quinta-feira, 30 de abril de 2009

A ânfora em vermelho (de Alma Welt)

(ou Auto-biografia breve)
387

Eu sinto que estou perto da vida
Quando observo o mundo e sua lida
A partir deste reduto aonde vim
Viver desde que me dei por mim,

Guria entre piás, e deslumbrada,
Chegada da pequena Novo Hamburgo
Onde após me ver parida numa estrada
Meu pai fora viver qual demiurgo.

E aqui fui, neste vetusto casarão
Educada para ser o seu orgulho
E não a simples filha do patrão,

Mas aquela que seria o seu espelho,
E como grega ânfora em vermelho
Compensar do passado o mero entulho.

(sem data)

Nota
...grega ânfora em vermelho- Alma (que era ruiva) se refere àquele tipo característico de cerâmica ática (da antiga Grécia) que tem como característica as figuras pintadas somente em vermelho (ficando assim chamadas pelos arqueólogos, colecionadores e museus), das quais constam tantas obras-primas, e que quando encontradas numa escavação compensam toneladas de entulho, ou simples terra e pedras inúteis. (Lucia Welt)

Álbum de memórias (de Alma Welt )

Álbum de memórias (de Alma Welt)
386


Meu álbum fotográfico do Pampa!
Bah! Como narram minha história
As fotos em que o rosto meu se estampa
Fundidas co’as que guardo na memória!

Ali me vejo pequena e cacheada,
Com estranho vestido até os pés,
De antiga gola branca e rendada
E co’aquele olharzinho de viés.

Depois, donzela branca e sensível
A colher flor no jardim ou na campina,
A Infanta que a si mesma se imagina.

Depois ainda, a pintora-poetisa
Pincel na mão e a paleta indefectível
Muito melhor que o quadro, e mais precisa...

(sem data)


O Iceberg (de Alma Welt)
385

Deus criou o mundo inconsciente
Onde somos todos Anima e magia.
A razão é um universo penitente,
Diminuto, limitado, dia a dia.

Mas na base imensa do iceberg,
Que riqueza, que cosmos, que amplidão,
No sonho que a alma ainda persegue
Ao despertar pela manhã em solidão!

Como, pois, duvidar do dom divino
Se a própria divindade compartilha
O poder, o mito e a alegoria

No sono do velho e do menino?
E desta Alma desperta em sua ilha
A sonhar um oceano de alegria...

15/12/2006


Fênix (de Alma Welt)
384

Toda a experiência acumulada
Foi vã diante da força do momento
De emoção pungente e desatada
Produzida por antigo sentimento

Que voltou a mim como um pampeiro
Quando confrontei meu próprio amor
Ao vê-lo adentrar o meu terreiro
Vindo em minha direção... o predador!

E então, ó santa ingenuidade!
Um rubor me sobe, ó inocência!
E o tremor substitui toda a saudade.

E como uma donzela de outra era
Voltei a sonhar a tal quimera
Do primeiro amor em sua demência...

(sem data)


O pêndulo parado (de Alma Welt)
383

Vou-me daqui, Rôdo, por ora.
Não posso mais, não passarei na prova,
Nosso pai amado foi-se embora,
Eu mesma o vi descer àquela cova.

Tudo por aqui clama ou ilude,
Meu coração tropeça em sua sombra,
Ouço ainda seus passos sobre a alfombra
Que deveria guardá-los em quietude.

Mas os livros, mudos, o piano...
E o relógio da sala é só silêncio,
Os ponteiros no vão doze romano,

Imóveis congelados no momento,
O pêndulo inerte, ponte pênsil
Sobre o nada eterno e seu tormento...

(sem data(1999?)



Sonho e projeção (de Alma Welt)
382

Nas noites da estância há muito brilho,
Quero dizer, outro brilho que não meu,
Como o comboio da lua no seu trilho,
A viagem que meu pai me prometeu.

Sim, quando guria no seu colo,
Ele me apontando a Branca Via,
Turnê brilhante de uma carreira solo,
Que assim no seu sonho ele me via...

Mas de cabelos soltos, muito branca,
Ladeada por ele e pelo irmão
Eu sonhava que ali cavalgaria.

E era essa a imagem pura e franca
Que eu fazia dele mesmo em projeção
Pois meu mundo era pleno, e eu sabia...

(sem data)


Manhãs (de Alma Welt)
381

Belas manhãs, esplêndidas manhãs
Quando após um breve chimarrão,
A geléia e o queijo sobre o pão,
Eu corria para o prado e seus afãs.

E abrindo meus braços para o céu
Azul de doer de tão perfeito,
Eu experimentava vir do peito
Das andorinhas o mágico escarcéu.

E no calor girava até cair
De tontura, emoção e euforia
Por estar viva e tanto isso sentir.

Mas eis que a sombra começava a vir,
Não do umbu a fronde que alivia,
Mas do afoito coração que entardecia.

(sem data)

Nota
Acabo de encontrar este belo soneto inédito na Arca da Alma, que no entanto denuncia já o trantorno bipolar, doença que a acometeria nos últimos anos e que pode ter sido a causa da morte da grande poetisa. (Lucia Welt)


Arcádicas vigílias (de Alma Welt)
380

Espectros arcaicos desta estância!
Nas noites das vigílias gauchescas
Eu os vejo em torno desde a infância
A rodar e a dançar chulas grotescas.

Mas eu os saúdo e a eles brindo
Com o vinho dos avós para aplacá-los
Ou mesmo seduzi-los, e até rindo
Quando estão a exibir imensos falos.

E em noites de luar desmesurado
Vago com eles alva e seminua
Pela relva grisalha do meu prado.

E se da prenda xucra e sem dono
Em malícia o povo o mito perpetua,
Em arcádicas orgias me abandono...


(sem data)



A Noite do Maestro (de Alma Welt)
379

Noite perplexa, pálida e demente
A se estender da casa à pradaria
Desde o coração da minha gente
Concentrada no salão e escadaria,

Todos à roda do corpo tão presente
A que só eu via a grande espada
Entre as mãos no peito e repousada
Longitudinal e reluzente...

O maestro jazia inanimado
Mas a música de seus dedos se ouvia
A tocar num gravador ultrapassado,

Parecendo vir de longe, muito longe,
D’uma idade recheada de magia
Onde fora grão-senhor, guerreiro e monge...


03/01/2001

Nota
Acabo de encontrar este soneto na arca da Alma, que junto à serie dos "Delirantes", embora seja bem claro e descritivo do velório do Vati (papai) que para os novos leitores esclareço que também era chamado de Maestro pelos peões e alguns de nós, pois era um grande pianista embora fosse médico (só exerceu a medicina na juventude). (Lucia Welt)



O gaucho triste (de Alma Welt)
378

Vinha o gaucho ereto em sua sela,
Montado no vento e sem cavalo.
A noite carecia de uma vela
Que a lua era negra e sem um halo.

“Vai-te”, disse eu, “por quem me tomas?”
“Sou a prenda fiel de pai e irmão,
E não deixarei que escuras formas
Venham entrever meu coração!”

E o gaucho espectral continuava
Ali, com a face branca e triste,
E o zum de seu silêncio se arrastava.

Longos bigodes, chapéu de barbicacho,
No seu punho uma lâmina em riste,
A outra mão a conter o rubro facho...

05/02/2004



Sob a figueira (de Alma Welt)
377

Sob a figueira em sonho estava ela,
A branca peregrina de uma noite,
Sentada de viés em sua sela
Os olhos a pedir que não me afoite.

E eu me aproximei arrepanhando
Minha longa saia de cetim
Com meus pés inseguros caminhando
Numa espécie sedosa de capim

Dourado, como a bruma que luzia
E envolvia tudo em doce flama
Que por si apaziguava e seduzia.

E eu ouvi a voz que se me canta,
E o coração, ao recordar, ainda inflama:
"Virás comigo em breve, Alma, Infanta."



A Cavalhada (de Alma Welt)
376

A cavalhada vem durante o sono
E passa por mim em sobressalto,
Que desperto então em pleno Outono
Com as folhas varridas para o alto.

E corro, bah! eu corro desde então
Das minhas horas em fluxo contrário
Que buscam varrer-me para o chão
Com seu vento forte e arbitrário,

O Minuano, sim, que se diz dono,
E me quer não como às folhas, mas mulher,
Eu que prefiro os cavalos do meu sono

Que brancos como ondas me seduzem
E no abismal galope me conduzem
Aos páramos profundos do meu ser...

10/03/2005



Noites abrasadas (de Alma Welt)
375

Noites abrasadas, tão freqüentes
De minha grande dor transfigurada,
Quando o vão clamor pelos ausentes
Deixava o meu rastro pela escada.

Madrugadas doridas entre os galos
E os latidos longínquos na estrada;
Os minutos escorrendo pelos ralos,
Dedos e passos percorrendo o nada.

Depois o som há muito ausente do piano
Negro e mudo, a vir do tétrico Steinway
Que o mestre dedilhava e tanto amei,

Agora que só tons graves se ouvem
Tangidos pelo intruso Minuano
Como arremedo surdo de um Beethoven...

06/01/2007


Nota
Acabo de descobrir um novo tesouro na Arca da Alma: um grosso maço de papel contendo sonetos manuscritos que pelo seu timbre e conteúdo resolvi entitular "Sonetos Delirantes da Alma".
A grande poetisa cultivava também uma vertente obscura e misteriosa, por vezes assustadora, na sua imaginação tão rica de mundos e timbres.
À medida que os for compilando e digitando, irei publicando numerados. Talvez tome a liberdade de entitulá-los, para efeito de melhor divulgação no Google, pois Alma não fez, nem sequer os numerou.
(Lucia Welt)


O espírito do vinho (de Alma Welt)
374

O ser que vive em nossa adega
Vela o eterno sonho desse ninho,
Brinca de deixar a alma cega
E nomeia-se “o espírito do vinho”.

Eu sei, ele mesmo me tomou
E me fez aos quinze desnudar-me,
Tateando quando a luz aqui faltou
Para ir ao sótão e entregar-me.

Depois de cada festa pampiana,
Lá estava sussurrando do meu lado,
Instando-me a correr esse perigo:

Eu tinha que passar pelo inimigo,
O sono leve da matrona Açoriana,
Para em risos colar no irmão amado...

(sem data)


Natura e Divindade (de Alma Welt)
373

O segredo de crescer é admirar
O imenso dom da vida e o mistério
Do extremo afã de se perpetuar
Que vemos desde cima ao andar térreo,

Ali mesmo, no âmbito invisível
Dos seres que constroem a fina teia
À qual o ser humano é remissível,
E que é a própria base da “cadeia”.

Foi esse o pensamento de cientista
Que o Vati legou-me como herança
Dizendo ser o seu mesmo, de artista:

Se a Natura tem tal complexidade
Redundando em espetáculo e pujança,
A Beleza é o embrião da Divindade...

08/03/2005

Nota

Encantou-me encontrar agora há pouco na Arca da Alma, este belo soneto desconhecido e inédito, de tom filosófico e científico ratificando a visão de artista que Alma diz ter herdado de nosso pai (o Vati= papai, em alemão) que era médico e pianista ao mesmo tempo. (Lucia Welt)



Amores meus! (de Alma Welt)
372

Amores meus, mitos sagrados,
Ícones de minh’alma agradecida,
Quão grata sou aos meus amados
Por se deixarem ser em minha vida!

Aquele inaugurou meu próprio ser
Debaixo da Árvore da Inocência,
A que escolhi, na aurora, pertencer,
Malgrado dúbio fruto e consciência;

Outro, tão ardente e de meu sexo,
Que colada a mim me duplicava,
Pois que ainda sinto o seu amplexo...

E outro e mais outro, como açoites,
Rubras flechas tiradas de uma aljava
E lançadas de mim nas minhas noites...

16/01/2007



As palavras vivem (de Alma Welt)
371

As palavras vivem e me constroem,
Sou filha delas, mito e criação;
Afinal menos letra e mais canção
Já não sei se me nutrem ou se doem...

Pintei o meu mundo com meus versos
Desde o nascimento numa estrada
Até os vãos momentos adversos
Em que tive minha candura violada.

Mas quanto vi crescer este meu Pampa
Interior, como o reflexo do espelho
De um cenário real e não de estampa:

Esta casa, seu jardim e meu pomar,
O vinhedo entre o roxo e o vermelho
Do sangue desta terra em meu lagar!

15/01/2007

O ninho da Salamandra (de Alma Welt)
370

Iremos lá, àquele Cerro, meu irmão,
Como fomos juntos às Missões,
Sete Povos, lembra? num verão,
Quando a lenda nos tocou os corações.

Mas ao Jarau iremos delirantes
E assim encontraremos o caminho
E chegaremos à sala dos diamantes
Onde a Salamandra fez seu ninho.

E seguiremos, eu sei, e não malditos
Pois não somos movidos por ganância,
Mas pela graça de nossa leda infância.

Quanto ao ouro e o poder, estes gigantes
Não nos poderão deixar aflitos,
Que o tesouro vive em nós e vem de antes.


14/10/2006
Missões- Alma se refere aos Sete Povos das Missões, conjunto de ruinas grandiosas das "reduções" jesuítas no Pampa riograndense, que Alma e Rodo visitaram algumas vezes, à primeira vez ainda guris, com o nosso Vati.

* (Cerro do) Jarau- Alma se refere à lenda gaúcha da Salamanca do Jarau, de origem popular anônima pampiana, mas consagrada na versão do escritor gaúcho Simões Lopez Netto em 1913. Note-se que há versões em que a palavra Salamanca (da princesa moura que vem dessa terra de Espanha) se torna Salamandra, o elemental do fogo, que na lenda é chamada de Teiniaguá. (Lucia Welt)



Original, sem pecado (de Alma Welt)
369

Meu pai criou-me sem pecado,
Refiro-me ao meu Vati e ao conceito
Que dotou o ser humano de um defeito
No nascedouro e com certificado,

Sim, o batismo, que faltou-me
E que eu não devia carregar,
E pra isso da charrete retirou-me
Quando a Mutti ia ao padre me levar.

Mas ao longo desta minha jornada
Por Jesus me confesso fascinada,
Ao menos por seu dom de compaixão.

Quanto ao resto, credito não ao Cristo
Mas ao Gênesis, com seu pobre Adão
Que não merecia tudo isto...


Páscoa de 2006


Nota
Soneto nitidamente humorístico, que acabo de encontrar na arca da Alma, e oportuno pois escrito na páscoa de 2006. Apesar do humorismo e suave ironia, nele Alma ressalva a mensagem fundamental de Cristo, esta indiscutível: a compaixão. Alma quis dizer que Cristo não expulsaria o homem do Paraíso terrestre.
(Lucia Welt)



A cidade e o rio (de Alma Welt)
368

Na cidade fui um dia questionada:
“O que fazes pelo povo?” alguém provoca:
“Estás encolhida em tua toca
E tens a vista para ti mesma voltada”.

E eu que não sou nada de polêmica
E nem por defesa ando armada,
Por momento quedei desconcertada
E quase me senti um tanto anêmica.

Então me subiu rubor e brios,
Dizendo: “sou somente servidora,
Centrada em mim mesma como os rios

Para os que ali vivem às margens,
Pois que broto de uma vã fonte canora
Que dá frutos, colheitas e pastagens.”

12/07/2006



O Promontório e a Ilha (de Alma Welt)
367


Eu levantava muito cedo ainda guria
E tateava para ir ao escritório
Fuçar no que meu pai lia e relia,
Livros sobre a mesa, em promontório.

Eu achava que esta honra lhe devia,
Formando erudição muito precoce
Pois se perguntasse o que eu sentia,
Saberia responder fosse o que fosse.

E tentava acompanhar suas pesquisas
Descobrindo um universo colossal
Como um mar a bater sobre banquisas.

Mas um dia, questionada, afinal,
Senti que o promontório virou ilha:
“Vai ao sol, estás pálida, minha filha.”

06/05/2005


O Labirinto do Minuano (de Alma Welt)
366

Encontrei a passagem numa estante
Da fiel biblioteca e nosso gozo
Aqui no casarão, que num instante
Afigurou-se um labirinto perigoso.

Esta noite irei me aventurar
Pelo dúbio corredor mas instigante,
Não deixando todavia de me atar
À ponta de um novelo de barbante,

Mas temo que a passagem, por secreta,
Levará a imponderável metaplano
Que por certo nunca foi a minha meta,

E no centro do sulino labirinto
Estará o minotauro: o Minuano
Que, sim, me levará, eu bem o sinto.

03/11/2006


Nota
*Minuano- Nome do vento típico e famoso das planícies do Pampa. Este vento frio e veloz se insinua sibilante pelas frestas das portas e janelas fazendo cair de súbito a temperatura, enregelando e assustando as pessoas. Alma tinha grande temor e reverência por este vento, que quando soprava a deixava fora de si, histérica. Ela chamava o minuano de "rei Mino "e aterrorizada gritava que ele vinha buscá-la. Apavorada, assisti algumas vezes minha irmã perder o controle e debater-se no chão em convulsões quando soprava este vento terrível. Garanto que minha irmã não era epilética, mas sim hipersensível. (Lucia Welt)
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Quinta-feira, 9 de Abril de 2009
Gato na cama (de Alma Welt)





Gato na cama (de Alma Welt)
365


Sobre a colcha colorida do meu leito
Deixo o gato subir e aproveitar
Ronronando e oferecendo o preito
Ao aconchego que acabo de deixar

Desse caos macio e retalhado
Que é o próprio universo goghiano
Que num relance vejo ali plasmado
Antes de sair pra um outro plano:

O de minha pradaria tão eqüestre
Não como as de Arles ou de Flandres
Onde outrora viveu o ruivo mestre

Que não me consta ter tido o seu gatinho,
Que a ele faltou, como a "noigandres"*
O sentido que perdeu-se no caminho...

18/05/2005

Notas
Deste curioso e notável soneto que encontrei recentemente na Arca da Alma, o mestre Guilherme de Faria pintou uma verdadeira ilustração a meu pedido, o maravilhoso quadro acima reproduzido, a que ele deu, naturalmente, o mesmo título do soneto da Alma : "Gato na Cama". A pintura de Guilherme sugere sutil e remotamente o quadro da cama no quarto de Van Gogh, que o próprio soneto da Alma parece evocar .

*noigandres- Palavra enigmática encontrada no último verso de um poema do poeta provençal (da Idade Média) Arnault Daniel ("...y olor de noigandres"). Ezra Pound, grande poeta e filólogo, numa entrevista a Haroldo de Campos, em Rapallo, na Itália, no fim de sua vida, comenta que jamais pode encontrar o significado dessa palavra, que se perdeu no tempo. Os irmãos Campos e Décio Pignatari, então, na década de 50 fundaram a revista literária Noigandres, porta-voz do movimento concretista na poesia paulistana.(Lucia Welt)

Pretenciosamente, pois não sou filóloga, arrisco por minha conta a seguinte interpretação da palavra noigandres baseada no fato de ela vir precedida no verso de A. Daniel da palavra olor (perfume). Poderia ser uma erva ou uma flor odorífera... Mas tentando analisá-la etimologicamente, eu diria que
noig é a raiz da palavra nóz (semente)
e andres deriva do grego andros = viril
portanto a palavra noigandres quereria dizer: semente viril= esperma

Entretanto me desconcerta o fato de não ter encontrado em parte alguma um raciocínio daqueles poetas ou de qualquer outro no sentido do que arrisquei aqui. Eles permaneceram até o fim de suas vidas cultuando essa palavra como um enígma insolúvel ou uma espécie de mistério etimológico.
Eu adoraria ter conversado pessoalmente com eles sobre isso (quanta pretensão!...) mas, sendo da geração do meu pai, já faleceram, ou me são inacessíveis.


Tanscrevo aqui a "transcriação" de Augusto de Campos para o poema em idioma provençal Noigandres , de Arnaut Daniel:

Er vei vermeils, vertz, blaus, blancs, gruocs
Vergiers, plans, plais, tertres e vaus;
Ei' l votz del auselz sona e tint
Ab doutz acort maitin e tart.
So'm met en cor qu'ieu colore mon chan
D'un aital flor don lo fruitz sia amors
E jois lo grans, e l'olors de noigandres.


Vejo vermelhos, verdes, blaus,brancos, cobaltos
Vergéis, plainos, planaltos, montes, vales;
A voz dos passarinhos voa e soa
Em doces notas, manhãs, tarde, noite.
Então todo o meu ser quer que eu colora o canto
De uma flor cujo fruto é só de amor,
O grão só de alegria e o olor de noigandres *

* O grão só de alegria e o olor livre de tédio

Pela nota que Augusto de Campos colocou sob o poema, percebe-se se que o tradutor atribuiu a noig o significado de tédio, talvez por abrandamento do g em a produzindo a palavra noia (tédio, em italiano ainda hoje)mas mais certamente porque partiu da expressão do francês "L'enoi gandir ( francês arcaico enoi que transformou-se no moderno l'ennui,o tédio) gandir" (achando gandres derivada do francês gandir (proteger). Mas confesso que prefiro a minha tradução que tem mais a ver com o sentido do poema, da "flor cujo fruto é só de amor", e seria própria da malícia ou erotismo típicos desse autor provençal. (Lucia Welt)




O canto da colina (de Alma Welt)
364

É domingo e eu preparo a ida
À colina levar flores aos finados,
Ao meu Vati, ao boche e avó Frida
E o melhor dos destinos malfadados:

Minha pobre e triste irmã Solange
Que depois de uma vida equivocada,
No momento final, o do alfanje,
Cresceu, perdoou, foi perdoada.*

E agora está com eles na colina
Gozando a paz, a luz, a brisa fria
E aquele bem-te-vi que tanto trina

Como a dizer que os viu e aprovou,
Bem os quis, como alguém que os queria
E por amá-los viveu e tanto errou...

12/01/2007

Nota
*... cresceu, perdoou...-Para o leitor entender o significado deste verso, ou do soneto inteiro, recomendo que leia o romance A Herança, que, nas últimas páginas descreve os momentos finais de nossa irmã Solange nos braços da Alma, a quem até então hostilizara e tratara como inimiga. Elas se perdoaram mutuamente naquele derradeiro minuto.(Lucia Welt)

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Álbum de memórias (de Alma Welt)

363

Meu álbum fotográfico do Pampa!
Bah! Como narram minha história
As fotos em que o rosto meu se estampa
Fundidas co’as que guardo na memória!

Ali me vejo pequena e cacheada,
Com estranho vestido até os pés,
De antiga gola branca e rendada
E co’aquele olharzinho de viés.

Depois, donzela branca e sensível
A colher flor no jardim ou na campina,
A Infanta que a si mesma se imagina.

Depois ainda, a pintora-poetisa
Pincel na mão e a paleta indefectível
Melhor ali que o quadro, e mais precisa...

(sem data)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Amores meus! (de Alma Welt)

362

Amores meus, mitos sagrados,
Ícones de minh’alma agradecida,
Quão grata sou aos meus amados
Por se deixarem ser em minha vida!

Aquele inaugurou meu próprio ser
Debaixo da Árvore da Inocência
A que escolhi na aurora pertencer,
Malgrado dúbio fruto e consciência;

Outro, tão ardente e de meu sexo,
Que colada a mim me duplicava,
Pois que ainda sinto o seu amplexo...

E outro e mais outro, como açoites,
Rubras flechas tiradas de uma aljava
E lançadas de mim nas minhas noites...

16/01/2007

sábado, 18 de abril de 2009

As palavras vivem (de Alma Welt)

361

As palavras vivem, me constroem,
Sou filha delas, mito e criação;
Afinal menos letra e mais canção
Já não sei se me nutrem ou se doem...

Pintei o meu mundo com meus versos
Desde o nascimento numa estrada,
Até os vãos momentos adversos
Em que tive minha candura violada.

Mas quanto vi crescer este meu Pampa
Interior, como o reflexo do espelho
De um cenário real e não de estampa:

Esta casa, seu jardim e meu pomar,
O vinhedo entre o roxo e o vermelho
Do sangue desta terra em meu lagar!

15/01/2007

O ninho da Salamandra (de Alma Welt)

360

Iremos lá, àquele Cerro, meu irmão,
Como fomos juntos às Missões,
Sete Povos, lembra? num verão,
Quando a lenda nos tocou os corações.

Mas ao Jarau iremos delirantes
E assim encontraremos o caminho
E chegaremos à sala dos diamantes
Onde a Salamandra fez seu ninho.

E seguiremos, eu sei, e não malditos
Pois não somos movidos por ganância,
Mas pela graça de nossa leda infância.

Quanto ao ouro e o poder, estes gigantes
Não mais nos poderão deixar aflitos,
Que o tesouro vive em nós e vem de antes.

14/10/2006

Original, sem pecado (de Alma Welt)

359

Meu pai criou-me sem pecado,
Refiro-me ao meu Vati e ao conceito
Que dotou o ser humano de um defeito
No nascedouro e com certificado,

Sim, o batismo, que faltou-me
E que eu não devia carregar,
E pra isso da charrete retirou-me
Quando a Mutti ia ao padre me levar.

Mas ao longo desta minha jornada
Por Jesus me confesso fascinada,
Ao menos por seu dom de compaixão.

Quanto ao resto, credito não ao Cristo
Mas ao Gênesis, com seu pobre Adão
Que não merecia tudo isto...


Páscoa de 2006


Nota
Soneto nitidamente humorístico, que acabo de encontrar na arca da Alma, e oportuno pois escrito na páscoa de 2006. Apesar do humorismo e suave ironia, nele Alma ressalva a mensagem fundamental de Cristo, esta indiscutível: a compaixão. Alma quis dizer que Cristo não expulsaria o homem do Paraíso terrestre.
(Lucia Welt)

A cidade e o rio (de Alma Welt)

358

Na cidade fui um dia questionada:
“O que fazes pelo povo?” alguém provoca:
“Estás encolhida em tua toca
E tens a vista para ti mesma voltada”.

E eu que não sou mesmo de polêmica
E nem por defesa ando armada,
Por momento quedei desconcertada
E quase me senti um tanto anêmica.

Então me subiu rubor e brios,
Dizendo: “sou somente servidora,
Centrada em mim mesma como os rios

Para os que ali vivem às margens,
Pois que broto de uma vã fonte canora
Que dá frutos, colheitas e pastagens.”

12/07/2006

O Promontório e a Ilha (de Alma Welt)

357

Eu levantava muito cedo ainda guria
E tateava para ir ao escritório
Fuçar no que meu pai lia e relia,
Livros sobre a mesa, em promontório.

Eu achava que este esforço lhe devia,
Formando erudição muito precoce
Pois se perguntasse o que eu sentia,
Saberia responder fosse o que fosse.

E tentava acompanhar suas pesquisas
Descobrindo um universo colossal
Como um mar a bater sobre banquisas.

Mas um dia, questionada, afinal,
Senti que o promontório virou ilha:
“Vai ao sol, estás pálida, minha filha.”

06/05/2005
Postado por Lúcia

sexta-feira, 10 de abril de 2009

O Labirinto do Minuano (de Alma Welt)

356

Encontrei a passagem numa estante
Da fiel biblioteca e nosso gozo
Aqui no casarão, que num instante
Afigurou-se um labirinto perigoso.

Esta noite irei me aventurar
Pelo dúbio corredor mas instigante,
Não deixando todavia de me atar
À ponta de um novelo de barbante,

Mas temo que a passagem, por secreta,
Levará a imponderável metaplano
Que por certo nunca foi a minha meta,

E no centro do sulino labirinto
Estará o minotauro: o Minuano
Que, sim, me levará, eu bem o sinto.

03/11/2006


Nota
*Minuano- Nome do vento típico e famoso das planícies do Pampa. Este vento frio e veloz se insinua sibilante pelas frestas das portas e janelas fazendo cair de súbito a temperatura, enregelando e assustando as pessoas. Alma tinha grande temor por este vento, que quando soprava a deixava fora de si, histérica. Ela chamava o minuano de "rei Mino "e aterrorizada gritava que ele vinha buscá-la. Apavorada, assisti algumas vezes minha irmã perder o controle e debater-se no chão em convulsões quando soprava este vento terrível. Garanto que minha irmã não era epilética, mas sim hipersensível. (Lucia Welt)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

O canto da colina (de Alma Welt)

355

É domingo e eu preparo a ida
À colina levar flores aos finados,
Ao meu Vati, ao boche e avó Frida
E o melhor dos destinos malfadados:

Minha pobre e triste irmã Solange
Que depois de uma vida equivocada,
No momento final, o do alfanje,
Cresceu, perdoou, foi perdoada.

E agora está com eles na colina
Gozando a paz, a luz, a brisa fria
E aquele bem-te-vi que tanto trina

Como a dizer que os viu e aprovou,
Bem os quis, como alguém que os queria
E por amá-los viveu e tanto errou...

12/01/2007

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Amo colher flores (de Alma Welt)
354

Amo muito colher flores nestes prados
Já tangidos pela aragem da manhã,
E cercada por volteios e agrados
Das abelhas e os zumbidos feito imã

Como disse o canoro Djavan
Do som dos besouros e seu ouro
Em torno à brancura tão louçã
De minha própria carne e pêlo louro,

Em sossego também entre as ervinhas
Que me fazem, bah! lembrar-te, “linda Inês”
E “o nome que no peito escrito tinhas”,

Eu que não passo, cercada de mensagens
E poemas do antigo amor cortês,
De uma prenda a vagar entre pastagens...

08/06/2006


Nota
Como este soneto é de tema recorrente na obra da Alma, por curiosidade republico aqui o n°58:


As mulheres que colhem flores (de Alma Welt)

(58)

Quanto tenho estado a colher flores
Neste jardim amado desde a infância!
Aqui eu dediquei aos meus amores
Os melhores instantes de constância.

A mulher que colhe flores permanece
No tempo e nas retinas de alguém.
É imagem que a todos enternece
E é ícone e símbolo também.

Quando não houver quem as colher
No pé que as formou sem as tolher
As flores morrerão envelhecidas:

Foram belas, ali, por algum tempo,
Mas não produziram o momento
Do sorriso e das mãos agradecidas...

24/12/2006




Perdidas ilusões (de Alma Welt)
353

Sonhos meus, perdidas ilusões!
Como diziam as que me precederam,
Tolas donzelas, as que excederam
As regras, como eu, com os varões.

Quebrei contratos, talvez, e mesmo a cara,
Como dizem agora, e com razão.
Recolho-me ao meu sexo, mais avara,
Que não provoco mais nenhum machão.

Traumatizada? Sim. Eu me confesso.
Fui invadida mesmo, sem mercê,
Mas à mercê de fato de um possesso.

Trago ventre e traseiro doloridos,
A retaguarda mais, como se vê
Pelo mau passo e sorriso, tão sofridos...

14/10/2004

Nota
Acabo de encontrar na arca este singular soneto, que pela data corresponde ao período logo após a chegada de volta ao nosso casarão, depois de sofrer o estupro (inclusive anal!) por parte do namorado de Aline, que invadiu o ateliê-apartamento de São Paulo quando Alma se encontrava sozinha encaixotando os livros para retornar com Aline à estância. Alma tinha se tornado amante de sua modelo que abandonara o namorado de mais de um ano, por ela, a pintora e poetisa que a contratara e por quem se apaixonara ( episódio que consta no romance autobiográfico inédito A Herança, de Alma Welt).
Resolvi publicar aqui, e não nos “Eróticos” simplesmente, este patético e estranho soneto revelador, de humor auto-crítico e ligeiramente amargo, pois pretendo me manter fiel ao voto de respeitar o seu desejo de revelar tudo, de tudo narrar, sem nenhuma auto-censura, a extraordinária e por vezes sofrida trajetória anímica e existencial que fez dela uma das mais extraordinárias autoras confessionais da literatura universal, ao meu ver e já no de muitos leitores. (Lucia Welt )


Voltem meus amores (de Alma Welt)
352

Voltem, oh! voltem meus amores,
Que aqui os espero em meu tugúrio!
Agora o meu amor e seus humores
Devem menos a Eros que a Mercúrio,

O esperto deus ligeiro das mensagens
Dos amantes, dos deuses e ladrões,
E tanto aos vãos amores temporões
Como àqueles precoces e selvagens.

Saibam que os espero em concílio,
Todos à roda do perdido coração,
Que acabo de voltar do meu exílio...

Estou de volta à terra do meu ser:
Aqui posso amar sem exclusão,
Abraçá-los todos juntos e... morrer.

05/07/2004

Nota
Este belo soneto já revela o pressentimento da Alma de que o ciclo de sua vida se fechava e que não viveria muito mais. Ela queria reunir poeticamente todos os seus amores e paixões, reconciliando-se com todos, inclusive com os que duraram tão pouco. Alma conseguiu expressar algo difícil como este concílio simbólico dos amores de toda uma vida num abraço final, carinhoso, redentor... ( Lucia Welt)


Meus navios (de Alma Welt)

351

Meu destino, estou mais que convencida,
É deixar minha passagem bem gravada
Em sonetos e também na própria vida
Que me cerca, a paisagem e a peonada.

Assim, sei que estarei perpetuando
Não a mim, mas o quê, o como, o quando
Desta casa, do jardim, do meu pomar,
Destas trilhas singradas como um mar.

E assim, quando acaso recordarem
Esta Alma, vã guria serelepe,
Reverão uma saga, se me amarem,

Que carreei por aqui um belo dia,
Como aqueles do audaz e bom Giuseppe,
Os navios da minha própria fantasia...

29/12/2006


Nota
Acabo de descobrir mais este soneto inédito, na arca da Alma. Nele podemos ver como ela encarava seu destino, não só literário, mas como vida imaginária... no imaginário de futuros leitores. Alma acreditava como poucos na vida do espírito, como o verdadeiro próposito da existência: nós somos mais duradouros, ou reviveremos... na mente dos outros. (Lucia Welt)

*como aqueles do audaz e bom Giuseppe- Alma se refere ao episódio histórico da Revolução Farroupilha, dos dois navios que Giuseppe Garibaldi e seus homens arrastaram em carretas puxadas por bois, através das pradarias por 104 kms, até o oceano para entrarem em batalha contra os "imperiais".


O que é a Verdade? (de Alma Welt)
350

“...a Verdade é a Beleza, a Beleza é a Verdade,
isto é tudo o que há para saber.”
(John Keats, em Ode a uma urna grega)


Olhar a vida, o mundo e o de dentro
É a prerrogativa do poeta
Mas simultaneamente, como esteta,
Pois que a Beleza está no centro

De tudo, pois que ela é a Verdade,
Como escreveu Keats no poema
Da urna grega, que logo virou lema
E responde à pergunta sem idade

Que Pilatos teria formulado
Num momento ao Cristo aprisionado,
Deixando-nos, a muitos, sem ação

Pois o Mestre calou-se sabiamente
Legando aos poetas a missão
De reconstruí-la lentamente...

(sem data)

Nota
Vale lembrar aqui a confirmação desse conceito metafísico da Verdade, que Alma adotava, nas palavras célebres de outro grande poeta-filósofo, mas do Romantismo Alemão, Novalis:

"A Poesia é o autêntico real absoluto. Quanto mais poético, mais verdadeiro".


Muito além das minhas rosas (de Alma Welt)

349

Aninhada no quarto entre paredes
Vetustas e entretanto carinhosas,
Mesmo assim percebo minhas sedes,
A ânsia de ir além das minhas rosas,

De ganhar a pradaria e o mundo...
Mas que sei eu do mundo? Eis a verdade,
Se vejo esta planície como fundo
Ou fundamento da própria eternidade!

E então uma inquietude geradora
De poemas e cantos me agoniza,
E talvez por isso mesmo salvadora,

Liberta-me do ninho e do aconchego
E posso ver o mundo sem ter visa,
Posso fazer voar o meu apego.

(sem data)


De viagens e úteros (Alma Welt)
348

Devo deixar meu Pampa e esta estância
Por longa temporada, em viagem,
E dói-me como abandonar a infância
Ou arrancar raiz, não só ramagem.

É sempre um desterro, um auto-exílio
Contra o qual me revolto e me debato
Não tanto contra a dor, mas contra o fato
De ser eu a própria lágrima em meu cílio

Que, frágil, trêmula, demoro
Para correr, descer, ganhar o mundo
Para o mundo saber que também choro.

E, bah! então voltar (falso pudor)
E recolher-me ao útero profundo
De onde nasço e renasço sem mais dor.

(18/02/1999)

Nota
Acabo de encontrar este soneto inédito da Alma em sua Arca e reconheço nele o momento que precedeu sua partida para São Paulo, num "auto-exílio", como ela se expressou, por imensa angústia logo após a morte do nosso Vati. Alma permaneceria quatro anos naquela metrópole, estabelecida num ateliê como pintora, onde conheceria Guilherme de Faria, que a descobriria como poetisa e a lançaria, conseguindo uma editora para publicar seu livro Contos da Alma (em 2004) (Lucia Welt)


O vinho e o Graal (de Alma Welt)
347

Percorrendo em vigia meu vinhedo
Tive linda visão e inusitada:
Um cacho isolado qual segredo
Pois que sua cor era dourada.

"Um cacho de ouro!"- exclamei.
"Galdério! Vem ver o que encontrei!
Vê se é uma praga, anomalia
Que possa destruir toda a valia

Da safra e também do nosso esforço!
É dente de pirata ou belo corso?
Deixo contigo juízo e decisão."

“Alma”- respondeu sábio o peão-
“Então não vês que o ouro é o sinal
De que temos o vinho e o Graal?”

(sem data)

Nota
Acabo de encontrar este curioso e encantador soneto, de acentuado pendor simbolista. E me lembrei de que na época, eu morando em Alegrete, ouvi comentários sobre o espantoso cacho dourado no meio do vinhedo, que se tornou uma das lendas da Alma e de nossa estância. (Lucia Welt)


A Árvore dos Sonhos (de Alma Welt)
346

As coisas que amamos nos dão paz
E levam-nos de volta às raízes
Do ser, ou dos seres tão felizes
Que fomos quando éramos piás.

Ali, ante a árvore dos sonhos
Antes do escândalo e do susto
Quando vida e mundo eram risonhos
E ainda não sabíamos o custo,

Prosternei-me um dia sem rancor
E sem mais a memória de horror
De quando tive a inocência violada

Debaixo dessa velha macieira
Que permanece pura e intocada
E a me ensinar a ser dessa maneira.

08/12/2006


A ribalta (de Alma Welt)
345

Sou feliz, meus leitores, reconheço,
Pois amo e sou amada, nada falta.
Em torno a mim, a teia que não teço:
A platéia calorosa, eu na ribalta.

Atenta aos meus versos de guria,
(pois que piá ainda já me ouviam)
Que somente ventos fortes impediam
Declamar meus versos... que mania!

E assim se me tornou essencial,
Que como respirar eu necessito
Escrever o meu soneto matinal,

Outros tantos depois durante o dia,
Sonetos que, esses sim, tecem o mito
Que me fiz em honra mesma da Poesia!

(sem data)

Nota
Este curioso soneto que acabo de descobrir na arca e de identificar como inédito, contém ao meu ver a chave para o entendimento de como a Alma via o seu fazer poético quase compulsivo: ela tinha consciência de viver através de sua própria poesia, que foi, realmente, erigindo-a em mito vivo, "tecido" soneto por soneto. (Lucia Welt)


Onde vivem os deuses (de Alma Welt)
344

E eu cantaria o amor que me coubera
Ao nascer de novo nestes pagos
Isolados do mundo, noutra era,
Onde vivem os deuses e os magos.

Aqui me apaixonei por meu irmão,
Que como Eros piá vivia alado,
Sem dar-nos conta da cruel proibição,
Pois somente guiados pelo Fado.

Eis que num certo dia, aziago,
Fomos flagrados ao pé da minha Ara
Num lance que faria grande estrago

Não fora em nós a reverência e a fé
Nos nossos velhos deuses, coisa rara,
Que nos salvou o amor e... a alma até.

(sem data)


Nota
Acabo de encontrar na arca este soneto de tema recorrente, onde Alma atribui à sua fé nos deuses a preservação da pureza de seu amor proibido, legitimado por ela em termos poéticos e estéticos, senão históricos e sociais, durante toda a sua vida. (Lucia Welt)


O navio na pradaria (de Alma Welt)
343

Eu canto o amor em sua constância
Nascido ainda guria nesta Alma
E que se acha inscrito em minha palma
Assim como as sendas desta estância

Que demarcam o embate farroupilha
Entre os rubros lenços e o quepe
Ou aquele amor de maravilha
Entre a bela Anita e o Giuseppe.

Assim, creio, meu amor tem o aval
Da força e do sangue pelas trilhas
De um estranho e pitoresco show naval

Quando o bravo Garibaldi carreou
Seu navio por entre ondas de coxilhas
Como carrego o amor que me tomou...

(sem data)

Nota
Acabo de encontrar na arca este soneto verdadeiramente épico, em que Alma compara o seu amor proibido (por Rodo, seu irmão) com a saga do navio de Garibaldi, arrastado pelos farroupilhas pela pradarias, passando por esta estância em que, um dia, muito depois, viveria a famíla Welt e uma grande poetisa que confundiria o seu amor com o passado glorioso destas terras. (Lucia Welt)


O Dia e a Noite (de Alma Welt)
342

Na infinita pradaria dos meus sonhos
Coruscante de orvalho e pirilampos
Com esparsos umbus por sobre os campos
Como sóbrias silhuetas, tão tristonhos

No sono reverente da Natura
Que espera o amanhã pra renascer
Em explosão de sons e de verdura
Com toda a passarada a agradecer,

Fiz da vida meu dia e meu poema,
Que da noite faria meu momento
De reflexão do Grande Tema...

Pois estou viva e jazo no elemento
Meu, que me foi dado pelos deuses
Que neste Sul demoram seus adeuses.

14/01/2007


Nota
Encontrei esta manhã na arca do sótão este soneto que confirma o panteísmo da Alma. A grande Poetisa convivia com os deuses antigos do Olimpo e do Walhalla, neste Sul, onde ela acreditava que vieram se refugiar e hesitavam em abandonar a Mãe Natura, "demorando-se" em infinitos adeuses, renovados todas as noites.(Lucia Welt)



Soneto e ruptura (Alma Welt)
341

Lançar um soneto no papel
É como “deitar sortes à ventura”*
Na expressão antiga do cordel
Que incorre numa certa ruptura.

Sim, pois que há o antes e o após
Do soneto último e durável
Por fração do gozo e do inefável
Desfrute produzido assim a sós.

Serei eu o que fui antes do verso
Que me transfigurou o pensamento
Fechando ciclo agora controverso?

Lançada em novo impulso para o mundo
Sou doravante o fruto do momento
Que ofertou não sua face, mas o fundo...

(sem data)


Nota

Neste soneto recém-descoberto na arca da Alma, e de implicação metafísica, Alma expressa a modificação (ou renovação) que o poeta sente durante e mesmo após a criação de um novo poema. Ela quer dizer que o momento da criação não pode ser avaliado em sua superfície, e que a Poesia revela esse "momento" (a instantaneidade do presente) em sua profundidade iniciática que só os poetas inspirados costumam perceber.

"...deitam sortes à ventura"- Essa expressão lusa arcaica, que pode ser entendida como um jogo qualquer de tirar a sorte para escolher alguém, é citada do poema narrativo português, precursor do cordel brasileiro, "Romance da Nau Catarineta", que no Sul ganhou melodia e era cantado no "fandango" até o final do século XIX.
(Lucia Welt)


Onde andarão? (de Alma Welt)
340

Por onde andarão os meus amigos
Que construíram comigo aquela teia
De pequenos prazeres e perigos
Que a memória viva ainda permeia?

Por onde andarão, estabanados,
Aqueles que passaram dos limites
E que foram entretanto perdoados
Para prosseguirmos sempre quites?

E aqueles mais amados, que varavam
A fronteira sutil da intimidade
E vinham em mim plantar o que amavam?

Estão em mim, eu sei, que ainda acalento
O profundo olhar e o momento
Supremo do abraço... e da saudade!

(sem data)

Nota
Emocionada acabo de encontrar este belíssimo soneto na arca da Alma, que constatei completamente inédito. Pena a Alma não ter datado, mas presumo que pertence ao últimos meses da grande poetisa, quando ela já se achava nostálgica e como que se despedindo do seu rico mundo, que ela tanto amava... (Lucia Welt)

.
Soneto da Quarta-feira (de Alma Welt)
339

Não direi que a vida é quarta-feira
De cinzas, muito menos Carnaval.
Contudo a mornidão não é o normal,
E o prazer tem muito pouco de rameira.

A alegria, sim, e até momentos
De euforia plena, desvairada,
São próprios da alma aventurada
Que busca atenuar os vãos tormentos.

Aqui nesta amplidão da natureza
Vivi a minha vida neste Pampa,
Com muitas alegrias, com certeza.

E ouso dizer que a vida é bela
Não como um clarão antes da campa,
Mas com a singeleza de uma vela.


(Fevereiro de 2004)


Adeus Pampa (de Alma Welt)
338

Pampa amado de minha juventude,
Da guria que fui e ainda sou!
Dói-me demais saber que não mais pude
Prorrogar os prazos que me dou.

Devo partir, eu sei, chegou o fim,
O Grande Gáltcho recusou a apelação,
A última que fiz, não só por mim
Mas por meu amor e meu irmão.

Por Lucia, Matilde e o bom Galdério,
Pelos guris no jardim do casarão,
E o bosque que me foi um refrigério.

Ah! A biblioteca imensa e amada
Também sala do "piano do patrão",
E, ai! Rodo, nossa alcova na mansarda...

18/01/2007

A Arca (de Alma Welt)
337

Aventureira fui em minha vida
E estive no limite, nos extremos.
Quantas vezes me julguei até perdida,
Vagando por lugares muito ermos

Da alma, onde poucos se arriscaram,
E a sentir o quanto é perigoso
Chegar onde os maiores habitaram,
Seus longínquos páramos de gozo!

É hora de fazer meu testamento
Implícito nos versos derradeiros
E legar o cabedal do pensamento:

Deixar meu tesouro nesta arca
Que veio dar a mim desde Petrarca,
Ouro d’alma em sonetos verdadeiros...*

17/01/2007

Notas
Acabo de encontrar na arca da Alma este "testamento" que constatei ser inédito, nunca publicado pela Poetisa em nenhum portal. Por ele percebemos que ela considerava a sua arca como o resultado de uma vida de aventuras anímicas (a alma como uma espécie de transcendente pirata?) ou a herança do manacial de inspiração dos grandes sonetistas desde Petrarca, cuja Musa celebrada foi Laura. (Lucia Welt)

* "Ouro d'alma em sonetos verdadeiros"-
Encontrei na arca uma variante deste soneto em que o terceto o final aparece assim:

Deixar meu tesouro nesta arca
Que veio dar a mim desde Petrarca,
Laureada em sonetos verdadeiros*

em que, curiosamente, a palavra "laureada" ao mesmo tempo que evoca a coroa de louros que cingem as têmporas dos grandes poetas na iconografia antiga, faz evocação de Laura, a musa celebrada de Petrarca.
Não sabemos por qual verso final Alma realmente optou no seu soneto.


Carnaval no pampa (de Alma Welt)
336

Quisera último e antigo Carnaval
Em que pudesse despir-me da persona
E embarcar na minha própria nau
Mesmo que me fosse dar à zona.

Sou eu mesma minha máscara, descubro,
E com ela enfrento meus receios
Ao aquecer meu coração ao rubro
Armando meus ardis por outros meios

E mesmo ser a Colombina desvairada
Que na verdade sou, pois tendo aberto
Um palco para toda a peonada,

Ou desnuda deixar que me alcançasse
A nave de desejos que desperto
Nem que ao pé do cais eu naufragasse...


(sem data)


Colombina (de Alma Welt)
335

É Carnaval e então a carne vale
E pelo oposto até tento me vestir
De Colombina, e que eu me rale
Para um Pierrot aqui me descobrir.

Na Pampa a fantasia está no lucro
Mas só de “gáltcho” macho e de chinoca;
Coringa foi tirado até do truco,
E Arlequim também não sai da toca.

Mas, delirante, correndo neste prado
Quero despir meu corpete e o saiote,
Deslocados que estão para o meu fado.

E logo nua, colocando a fantasia
No topo de um mourão, mero pacote,
Ateio fogo, como outrora se fazia...


20/02/2004

Pôquer de máscaras (de Alma Welt)
334

Em torno da mesa, mascarados
Camuflam os olhares e a esperteza,
Os meneios sutis, inusitados
Deste antigo pôquer de Veneza.

É pleno Carnaval, e os jogadores
Reunidos num salão abobadado,
Palácio de outra era, de outras dores,
Num tempo que parece retornado

Desdêmona passou de tranças feitas,
Feliz, antes da Noite das suspeitas,
E Giacomo, depois, como aprendiz

De aventureiro e sedutor empedernido
Sob a máscara de fálico nariz
Que tanto coração deixou perdido.

25/02/2005


Nota
Alma assistiu uma vez, em Veneza, em pleno Carnaval, num palácio sobre o Grande Canal, um tradicional jogo de pôquer mascarado, de que Rodo participou. Alma em longo vestido de época, armado, com magnífica máscara branca e um grande leque de plumas, deslisava por ali, à volta da mesa (diga-se de passagem: auxiliando nosso irmão no blefe). Ela jamais se esqueceria dessa experiência que fez seu espírito vagar por outras eras, naquela misteriosa e romântica cidade. Pouco depois, retornada ao Brasil ela me declamou esse soneto. Agora, como estamos no Carnaval me lembrei dele e fui procurá-lo na montanha de papéis de sua arca. Encontrei-o afinal, oportuno, pois Rodo se encontra em Veneza e me enviou um postal dizendo que está participando novamente desse tradicional e exclusivo pôquer de máscaras, em que se senta ao lado de banqueiros, magnatas, e eventualmente, até... chefões da Máfia (não posso deixar que a preocupação me tome...) (Lucia Welt)*(Desenho: Alma, como "Moira", em Veneza- de Guilherme de Faria)

*Desdêmona passou de tranças feitas- Alma sugere com este verso que a mulher de Otelo, vagou por esse salão quando donzela, solteira (de tranças) feliz , antes de começar o tempo das terríveis suspeitas, dos cíúmes, de seu futuro marido, o Mouro de Veneza.



A Flauta de Pã (de Alma Welt)

333

Em meio à pradaria esta manhã
Topei um peão chamado Acácio
Que como um pastor do antigo Lácio
Tocava estranha flauta: era de Pã.

Atraída, perguntei-lhe se sabia
Que essa flauta antiga assim chamava
E que com ela Dionisos comandava
Os cantos, as danças e... a orgia.

Então o pastor, desconfiado,
Olhou-me suspendendo o seu trinado
E respondeu com a charla de gaudério:

“Patroa, esta gaita é de família,
Nunca tocou só pr’uma guria,
E meu avô a ganhou num monastério.”

12/05/2005


Nota
Acabo de encontrar este gracioso soneto, para mim totalmente desconhecido, na arca da Alma. Publiquei-o imediatamente no blog dos Sonetos Gauchescos da Alma. (Lucia Welt)



Minha glória (de Alma Welt)
332

Ao erguer-me do leito de manhã
Eu me sinto na alvorada de uma vida
Pois ao me ver no espelho tão louçã,
Tão jovem ainda e... atrevida,

Vou enfrentar meus mares sem temores,
Pois lastreada na arca de sonetos
Há muito me despi dos meus pudores
E navego só meus cantos e motetos

Pelas rotas adoradas da campina
Que traço em minha trajetória
Com meus olhos em sintonia fina

Para com ondas de cor e de prazer,
Até eu não mais poder conter
Esta franca nudez que é minha glória...

24/08/2006


O Portal (de Alma Welt)
331


Quando olho a amplidão diante de mim
Deste tapete estendido ao horizonte,
Ondulado em leves pregas e sem fim,
Eu sei de onde brota a minha fonte

A minar esta poesia cristalina
Que busco porejar na minha pena
E que sendo alegria me condena
E que tristeza sendo mais me anima.

Então eu me levanto e ergo os braços
Para o alto oferecendo-me afinal
Àquele que me abriu este Portal

Pelo qual em breve, eu sinto, voltarei
Ao Grande Editor, co’os calhamaços,
Tendo cumprido o contrato que assinei.

06/01/2007


Ío e a nuvem ( das Metamorfoses de Zeus, de Alma Welt)
330

Depois do cisne, resolvi, uma por uma,
Desafiar Metamorfoses mais sutis
Pois há sempre a rota em que se ruma
E Zeus não lança mão de formas vis.

Como Danaé no estranho banho
Dourado que a veio iluminar
Assim eu mesma tive um ganho
Ao pedir ao meu amor pra me dourar.

Faltava agora por nuvem ser tomada,
E como nunca apreciei o “fumacê”
Não conseguia matar esta charada.

Então junto à cascata do meu rio
Envolta nua no vapor que ali se vê,
Fui possuída como a sonhadora Ío.

(sem data, circa 1999)

Nota

Percebe-se que o Mito da chuva de ouro de Danaé Alma resolveu com a simples urofilia, coisa que na verdade ela já conhecia bem com nosso irmão Rodo desde a infância. Note-se que urofilia ou urolagnia é uma prática sexual mais comum do que se pensa e conhecida popularmente como "banho dourado". Quanto à transformação de Zeus em nuvem para possuir a princesa Ío, Alma resolveu lindamente ao entregar-se ao seu amor em meio à neblina que se forma na nossa cascata, mais fortemente numa certa época do ano.(Lucia Welt)



Leda e o Cisne ( das Metamorfoses de Zeus, de Alma Welt)
329

Decidi experimentar volúpia nova
E encarnar princesas mitológicas
Acolhendo as entidades pouco lógicas
Em que Zeus transfigurado punha à prova

A doce e embevecida prontidão
Em tê-lo entre as coxas bem no meio
Ou como chuva de ouro no meu seio
Mesmo que ensopasse meu colchão.

Assim comecei pelo meu cisne
Que ganhara de meu pai, enternecida
Por sua beleza branca enaltecida

Em que senti das plumas como seda
Emergir rubro arpão sem que me tisne
As pétalas e encantos, como Leda...


(sem data)

Nota
Alma viveu sua extraordinária vida toda numa permanente dimensão poética. Ao ganhar de presente de nosso pai um maravilhoso e alvíssimo cisne vivo para soltá-lo no laguinho (o poço) da cascata, resolveu vivenciar os mitos das Metamorfoses de Zeus começando pelo de Leda. Por isso a vimos, sem atinar, muito íntima daquele cisne por um período. Minha louca irmãzinha...(risos). (Lucia Welt)


Das tentações (de Alma Welt)
328

"Deitam sortes à ventura qual se havia de matar.
Logo foi cair a sorte no capitão general."
(Romance da Nau Catarineta)


A superfície do papel em branco
Sempre me convida à aventura,
Não numa espécie de colóquio franco
Já que nela “deito sortes à ventura”

Como diziam os antigos navegantes,
Aqueles da Nau Catarineta,
Que viram a tentação um pouco antes
Do capitão saltar sua mureta.

Pois entre o espírito e o papel
Há todo um oceano de tensões
Antes das palavras em tropel.

No perigoso mar desta brancura
Assim também sofro as tentações,
Quando a mente namora sua loucura...

11/08/2006

Nota

Acabo de encontrar este notável soneto na arca da Alma, a meu ver digno de figurar nas melhores antologias do soneto universal, principalmente entre os de teor metafísico, ou os que abordam a própria arte de escrever poesia. (Lucia Welt)


(meu retrato pelo mestre Guilherme de Faria)
327

Observo o artista em sua prancheta
A desenhar como um divino arquiteto.
Comovida ao vê-lo assim tão quieto,
Me pego a afagar a minha teta

Pois este homem, sublime no desenho,
Revelou-se um amante inusitado
Em cujas mãos hábeis me detenho
Há noites, e bem longe de esgotado...

Então vem um rubor de mais malícia
Ao pensar que tem o creme e o refil
Que escorre do meu ventre qual carícia.

E antes que o distraia eu fico inerme
Para não interromper o meu perfil
Que está sendo traçado por Guilherme.

25/07/2001

Nota
Encontrei há pouco esta bela e sensual homenagem ao artista Guilherme de Faria, o mestre que descobriu, prefaciou, ilustrou e lançou a Alma. E que tanto a amou. Enviei-o a ele para que publicasse no seu blog, mas ele, por pudor ou por modéstia não quis fazê-lo. Ficou muito comovido, pois também não conhecia este soneto. Entretanto permitiu que eu o publicasse. (Lucia Welt)


O casarão (de Alma Welt)
326

Meu casarão é vivo e tem história
Mas também tristezas e rancores.
Por trás de sua velhice e sua glória
Há paixões, a sede dos amores.

É de noite que arfando mostra vida,
Cobrando suas dores e falências...
E eu saio a vagar entre as hortênsias
No jardim espectral da velha Frida,

Pra só voltar ao leito quando exausta
E quando já os galos predominam
Sobre os rumores desta casa infausta.

Então eu me desnudo e os convido,
Amores que em torno os ares minam,
A repousar em mim o seu olvido....

07/06/2006


Agradecimentos finais (de Alma Welt)

325

Pelos amores em vão correspondidos
Que não puderam por destino florescer,
Pelo prazer que me deram os escolhidos
E aqueles que ousaram me escolher;

Pelos bons momentos dissipados
Das orgias ressoando entre paredes,
Que tanto conhecemos, disfarçados,
E que não saciaram nossas sedes;

Pela paixão que nos fez a alma louca
Pelo gozo que demos um ao outro
Com o gosto de mel em nossa boca;

Por tudo o que é vital em nossa lida
E manteve o coração como de um potro,
Eu agradeço, ó Pampa, ó Sina, ó Vida!

18/01/2007


Arca de amor e fel (Alma Welt)

324


Quanto procurei na velha arca
As cartas e os vestígios de um amor
Que foi o de meu pai em seu vigor
E mais além, já quase em sua barca!

Espero que a Mutti me perdoe
Mas sei que não era o seu papel,
Que sem amor não há o que se doe
E a ela caberia a dor e o fel.

E nesta tragédia pampiana
Tomei eu partido do meu Vati
Em prejuízo da pobre Açoriana

Em quem não obstante o amargor
Plasmado em cada folha deste mate,
Reconheço agora tanto amor...

21/12/2006

Nota
Nessa mesma arca que agora guarda a imensa obra inédita de minha irmã, também procurei os vestígios desse misterioso amor de toda a vida de nosso pai, encontrando, como a Alma, somente pistas igualmente misteriosas. Alma se refere a isso também num capítulo de seu romance A Herança e também na crônica O rosto de Musidora, publicada no blog Crônicas de Alma Welt e também no site Texto Livre. (Lucia Welt)


Os encantos da alma (de Alma Welt)
323

Nas sombras cristalinas do meu bosque
Eu andei desde pequena solitária
E aprendi a ver as fadas num quiosque
E a rainha em sua forma vária

Que me chamava assim ao seu convívio
Pra me ensinar as coisas encantadas,
Longe da aridez e do oblívio
Das almas em que elas são negadas.

E eu ainda hoje me admiro
Do paradoxo da negação de tantos,
Já que à própria alma sobra encantos

Apesar de estar no mundo camuflada
A refletir no corpo quase nada,
A não ser num olhar e num suspiro...

09/11/2005



Nota

Por minha vez encantada, acabo de encontrar este soneto encantador da Alma em sua Arca inesgotável de inéditos. Este soneto me parece que já nasceu como um "clássico"...
(Lucia Welt)


Cassandra* (de Alma Welt)
322

Meu sonho de guria era real:
Eis-me aqui, poeta em plenitude.
Mas ao vivê-lo, eu vejo quão fatal
É ter um sonho chegado à completude!

Posso enxergar em mim, o dom das Parcas,
Meu Presente, Passado, e meu Futuro,
E neste, pouco além, meu próprio Muro,
Que dos três na palma tenho as marcas.

Mas, bah! por justamente tudo ver,
Muito embora por todos sendo amada,
É que é maior a dor de se viver...

Pois meu dom é ironia do Destino:
No cerne do meu ser (que desatino!)
Cassandra de mim mesma... ignorada.

08/12/2006

Nota:
Acabo de encontrar este fantástico soneto na arca da Alma. Minha irmã devia sofrer muito com o seu dom de vidência,que ela mesma buscava em vão ignorar...
(Lucia Welt)


*Cassandra, filha de Príamo, rei de Tróia, irmã de Heitor e Páris, que era sacerdotisa de Netuno e profetisa. Por um falta cometida, manteve seu dom de vidência, mas com a pena de jamais ser acreditada.



Abadia na floresta de carvalhos, de Caspar David Friedrich 1774-1840
Abadia na floresta de carvalhos (de Alma Welt)

321


Aqui estive eu, nesta abadia
Em ruínas em meio aos desgalhados
E retorcidos carvalhos de agonia
Entre túmulos esparsos, semeados.

Andei com estes monges no seu frio,
E conheço a solidão destas paragens,
Tão longe dos sonhos que ainda crio,
Tão próxima da Morte em sua imagem.

De nós mesmos, da terra e do ar,
Não há o que dizer, o que cantar,
Aqui o silêncio vem de dentro.

Eu vi o portal que ainda me espera
E por onde passarei à outra esfera
Para atingir do Mistério o pleno centro...

Alma Welt

(sem data)

A Ilha dos Mortos de Boecklin (de Alma Welt)
320

Não pare de remar, ó meu barqueiro!
Faça jus à soma que lhe pago,
Não hesite perante o nevoeiro
Que já desce saudando o que aqui trago.

Ajude-me também co’este caixão
Pois sozinha não poderei plantá-lo
Num nicho desta ilha em solidão
Com somente minha dor a acompanhá-lo.

Ilha Fatal, eis que sou tripla refém,
De pé na proa, como tu a me alçar
Das águas que ousei atravessar

Desse Letes obscuro em que vogamos,
Com meu próprio caixão que me contém,
Nós três: um só, no barco que remamos...


18/01/2007


Nota
Acabo de descobrir este soneto na arca da Alma e que pela data foi escrito na antevéspera da morte da Poetisa. De profundo teor alegórico-metafísico, Alma parece ter interpretado o famoso quadro do Boecklin, que lhe inspirou o soneto, com o barqueiro, a figura de pé na proa e mais o morto dentro do caixão como sendo três faces do mesmo ser: o morto que chega por seus próprios meios à Ilha da Solidão. (Lucia Welt)


Testamento gáltcho* (de Alma Welt)
319

Por estes belos pagos do meu Sul
Que me foram dados de cenário
E raízes sob o imenso toldo azul
Que é o teto do meu templo imaginário;

Aqui onde os “gáltchos” machos são
Reis de um reino todo em seu cavalo,
Nos limites da honra e da razão
Que os leva a transpor o imenso valo

Que existe entre domínio e dominado,
Entre o ser de escolha e o malfadado
Tantas vezes alcunhado de “gaudério”;

Aqui cresci, me alcei, fui poetisa
Votada ao meu próprio mistério,
De meu próprio destino a pitonisa!

15/01/2007


Nota
Acabo de descobrir na arca dos escritos da Alma, este "testamento", que percebi ser inédito (ela já escrevera outros testamentos). Este me pareceu especialmente significativo, pois revela o grau de consciência que ela tinha de seu singular destino e grandeza. Sim, o mistério foi nota dominante em sua trajetória, pois tal dimensão de beleza numa vida vivida em permanente dimensão poética não é corriqueiro na história da literatura ou das artes. ( Lucia Welt)
*gáltcho - fonético de gaucho, como os "castelhanos" (uruguaios e argentinos, nossos vizinhos de "la Pampa" pronunciam o nosso "gaúcho". Alma normalmente se referia assim aos nossos peões.


Primeiro amor (de Alma Welt)
318

Amores como sonhos se desfazem
Tênues como teias entre as ramas
Se deixamos de urdir as nossas tramas
Enquanto as ilusões se liquefazem.

Mas resta o amor que ainda esperas,
Somente aquele um, da nossa infância,
O beijo virginal de uma criança
Que reconhecemos de outras eras.

Os olhos de uma corça em seu candor
E o cheiro, ah! o perfume de uma boca
De pequenos lábios como flor

De que perseguiremos o respiro
(conquanto uma só vida seja pouca),
De cujo alento é feito o último suspiro.


(sem data)


Nota
Deslumbrada encontrei este soneto, sem data, na arca da Alma, e que fui logo conferir, o que é possivel graças ao instrumento de pesquisa dos blogs, e confirmei ser inédito. Alma, nele se refere ao primeiro amor,definitivo, que para alguns acontece ainda na infância, como foi o caso dela, nós sabemos por quem... (Lucia Welt)


Ecos no casarão (de Alma Welt)
317

De noite percorro o casarão
Por soturnos corredores silenciosos
Mas cheios de murmúrios capciosos
Das memórias do último verão

Quando a casa abrigava a alegria
Dos hóspedes ruidosos e parentes
Que lotavam como fosse hospedaria
Estes quartos agora tão silentes.

Ai! A casa já suspira de carência,
E chora e geme em sua demência
Tremelicando ao vento da campina!

Só restou Matilde, a mais fiel,
Galdério na charrete, sua sina,
E esta Alma que vaga, assim, ao léu...

16/01/2007

Nota

Encontrei nesta manhã de domingo, na arca da Alma, este belo e triste soneto, que denuncia o estado de espírito da Alma nos seus últimos dias. Infelizmente eu estava com meus quatro filhos (dois da falecida Solange, nossa irmã mais velha)em Alegrete e nada pude fazer por minha irmã, que eu não imaginava assim, tão desesperada... (Lucia Welt)



Profissão de Fé (II) (de Alma Welt)
316


Ungida no vinhedo dos avós,
Eu sinto que estou legitimada
E desde bem guria consagrada
A dar-me como vinho a todos vós.

Eis-me aqui, poetas e leitores
Nua, branca e bela, sem pudores
Com meus secretos filtros e perfumes,
Há muito devassada pelos lumes

Que lanço sobre mim, ó meus senhores!
Pois já nada escondo e tudo sou
Como a prerrogativa dos atores

E dos poetas, performers e cantores
Que sobem no palco e dão o show
Para glória do humano e seus humores..


08/01/2007
______________________________

Nota
Emocionada encontrei na arca da Alma este soneto que percebi como variante de um tema recorrente, e como estava sem título batisei-o com um já existente mas adicionando (II), para distingüi-lo. Alma conseguiu neste, a meu ver, expressar a vocação de todos os artistas e a legitimidade de seu suposto "exibicionismo". (Lucia Welt)


Camerata pampiana (de Alma Welt)
315

Corramos, meu irmão, depressa, vamos!
Pois temos muito chão nesta campina,
Se pro almoço atrasados, só, chegamos,
Haverá solo de relho e em surdina.

A Açoriana, maestrina, nos espera
Com a batuta na mão, e de marmelo.
Nos “fortíssimos” é onde ela se esmera,
Dos quais tenho um medo que me pelo.

Mas, bah! meu Rodo, valeu tanto
Ter estado contigo em camerata,
Nossos arpejos, sem pejos, na cascata...

Ai! Minha pele canta como os lábios
Lembrando teus abraços e o encanto
Dos teus “pianíssimos” tão sábios!

03/09/2006

Notas

Acabo de encontrar este soneto encantador na arca de inéditos da Alma. Suspeito que muitos sonetos ainda encontrarei tão primorosos como este, que nunca foram publicados pela Alma em nenhum site. Já são bem mais de 1.000 os sonetos dela compilados por mim até o momento. (Lucia Welt)

*Açoriana- como muitos já sabem, é como somente a Alma chamava nossa mãe, Ana Morgado, chamada "Mutti" por nós. Nossa mãe era muito católica e severa, ao contrário de nosso pai, o Vati, que criou a Alma como "uma pequena pagã". Havia muita dificuldade de relacionamento entre elas desde a infância, pois minha mãe temia o temperamento artístico exacerbado de minha irmã. Não obstante, creio que elas se amavam...


Balanço da Vida (de Alma Welt)
314

Lancei meu nome aos quatro ventos
Desde o Pampa a plena pradaria,
Levei minhas notícias de Poesia
Nas pequenas aventuras e eventos

Que me souberam assim universais,
Pois homens são um só, o mesmo medem
A oeste, norte, sul... leste do Éden,
Quanto mais fiéis aos seus quintais.

E assim vi minha Vinha prosperar
E as ramas do vinhedo me cercarem
Com os cachos sumarentos a brilhar.

Mas sei também meus poemas como hera
Cujos ramos pressinto se alastrarem
Nas paredes da Casa que me espera...

17/01/2007

Nota
Emocionada, encontrei agora há pouco este soneto, que deveria estar nos "Sonetos Pampianos", e que já fazia o balanço final da vida da grande Poetisa.(Lucia Welt)


A Ronda (de Alma Welt)
313

Esta noite irei ao meu jardim
Rever minhas memórias prediletas,
Ali, entre os eflúvios do jasmim
E o aroma mais sutil das violetas.

Como danço e giro em minha ronda!
Como sinto leves os meus braços!
Meu corpo quer rolar como uma onda
Ao rememorar os meus abraços,

Sim, dos meus amores, de guria
Que de tanto amar já me perdia
Naquela ânsia louca de entregar-me

Que fez de mim mesma minha amante
Por puro entusiasmo pela carne
Que tornava eterno cada instante...

10/01/2007

Nota
Encontrei agora, de madrugada, mais este soneto inédito, na arca da Alma, que me parece especialmente belo, e que reitera essa nota característica do "egotismo sublime" da nossa Poetisa. Por sua excepcional beleza, Alma tornou-se sua própria amante, como Narciso poético (redundância) que ela era. Não podemos culpá-la: diante dela sentia-se a legitimidade dessa paixão que transcendia a mera auto-estima. Pois nela, tudo parecia belo. Pelo tom, pelo talento, pela estética doce e natural de suas atitudes.(Lucia Welt)


O prelúdio sem fim (de Alma Welt)
311

Uma vez, voltando do meu prado
E já atravessando o nosso mate,
Ouvi um prelúdio executado
Por alguém que só podia ser o Vati.

Corri pelo jardim, logo o salão,
E chegando ao escritório para vê-lo
Surpreendi-me ao encontrar o irmão
Como de praxe a coçar o cotovelo.

Onde? Onde está nosso maestro?
Eu indaguei, espantada e meio tonta.
Quero ouvi-lo, me parece falta um resto!

"Minha irmã"- disse ele sério para mim-
"É um prelúdio para ti, não faça conta,
Que jamais irei tocá-lo até o fim..."

(sem data)


Acabo de encontrar este soneto na arca da Alma, que me dei conta de ser inédito, nunca publicado por ela ou por mim. Fui testemunha desse episódio. Rodo tocava piano maravilhosamente e compunha, raramente. Alma achava que ele desperdiçava seu talento, dedicando-se cada vez mais ao pôquer. Mas me parece que, ele ter composto um prelúdio inacabado para a sua Alma, contém uma vaga alegoria... (Lucia Welt)


No Labirinto da Alma (de Alma Welt )
310

Pelos labirintos desta estância
Vagueio como outrora sob a luz
Agora com temor e esta ânsia
Que não obstante me conduz

Pelas sendas onde ontem fui feliz
E corria alada a colher flores
Para florir meu quarto de aprendiz
Da Poesia, do Amor e suas dores.

Como viver os dias que me restam?
É a pergunta recorrente, intrometida
No rol de pensamentos que me infestam.

Ruivas colunas, galgando patamares,
Ruivos cabelos flamejando pelos ares,
Eis a Alma... que corre... já ferida!

18/01/2007

_______________________

Nota
Estarrecida acabo de encontrar este soneto inédito da Alma em sua arca do sótão, em que a imagem do Labirinto se confunde com a escadaria de colunata vermelha do palácio de Cnossos, em Creta, que nitidamente é o cenário ou metáfora que perpassa o poema, de dolorosa premonição da morte. Na verdade, cheguei rapidamente a essa interpretação porque Alma tinha um cartão postal dessa escadaria ladeada de colunas ("ruivas" como os seus cabelos) pregado com alfinete num painel de cortiça, de recordações de viagens e amigos, no seu quarto. Alma acreditava ter já vivido em Creta nesse palácio do Labirinto. Mais uma vez tive que chorar... (Lucia Welt)



Como conheci Rafisa (de Alma Welt)

309

Pela verde amplidão desta campina
Que se estende desde os pagos castelhanos
Até este quintal da minha vinha,
Vinha vindo uma carroça de ciganos.

Então a mula estacou extenuada
(seu nome logo eu haveria de escutar)
E da boléia desceu (eu deslumbrada)
A cigana que me caberia amar.

E com dois passos, lenta em sua nobreza,
Parou diante de mim na minha varanda,
Inusitada curvando um dos joelhos

Numa vênia como se eu fora a princesa,
E num gesto apresentando sua Miranda:
"Ela me trouxe a ti por entre espelhos!"


(sem data)

Nota:
Depois de algumas semanas sem poder pesquizar a montanha de textos da Alma na sua arca do sótão, da qual creio que já compilei, digitei e publiquei pelo menos a metade nestes 25 blogs, encontrei este soneto em manuscrito, sem título, que percebi que não havia visto até então, e que me pareceu importante pois conta como conheceu aquela que viria ser uma amiga muito especial (uma amante mesma, sejamos claros...), a cigana Rafisa, referida em tantos belos sonetos e que tendo contado à minha irmã aquele belo e trágico episódio da "coronelinha", que a Alma contou ao cordelista Guilherme de Faria, este escreveu sua obra-prima de cordel: "Romance da Vidência". Vide o blog:
www.guilhermedefariacordel.blogspot.com


Poema haragano (de Alma Welt)
208


Por ser filha do pampa e de meu pai
Eu pude amar, ser poeta e ser poesia
Que o peão já lembra e se extasia
Se pelo prado canta enquanto vai.

Sim, eu ouvi mais de um gaudério
Entoar um canto em sua sela
Em que reconheci o meu mistério
Ou dele a inspiração que me revela.

Pois quando o povo canta um verso teu,
Então está tudo certo, e podes rir:
Eis que o poeta atingiu seu apogeu.

E preciso é manter o diapasão
Para deixar mais música fluir
Como haragano quente no verão...


02/10/2006


Amor sem rosto (de Alma Welt)
307

Meu amor, a ti me dirigindo,
Saiba que te não personaliso,
Ao menos por enquanto, o que é lindo,
Pois és Amor, és Eros, Dioniso...

Bah! Quisera manter-te assim sem rosto,
Já que sendo deuses pouco valem
Os traços de uma máscara ou de um gosto
Que o Tempo não retém ou que se calem.

Como um nume, ou príncipe, quem sabe,
Toma-me nos braços que sou Alma
E minha alma no corpo já não cabe...

E leva-me, que me finjo adormecida,
Com aquela volúpia nada calma
Da guria que fui... cheia de vida!


15/01/2007


A mensagem (de Alma Welt)
306

Entre os livros de meu pai eu encontrei
Uma carta que há muito procurava.
Ele teria que escrevê-la, eu pensava,
Pois era o seu feitio, que dele herdei.

E ao cair ao chão, de entre as folhas,
Voltei o olhar pra ver quem era o Vate,
Pois sempre havia algo em suas escolhas
(eu conhecia os códigos do Vati...)

Mas eis que, surpresa, deparei
Com o livro que sempre me comove:
De Dostoiévski Os Irmãos Karamazovi

Em seguida li a carta propriamente,
E, implícita, a mensagem do meu rei:
"Alma, sê Aliocha, e una a gente..."


(sem data)


Nota
Acabo de encontrar este soneto solto no meio da montanha de textos da Alma na sua já famosa arca que estou há mais de um ano compilando. Nosso Vati sempre enviava mensagens secretas para a Alma desde guria, na forma de charadas, enígmas, capciosas indicações ou pistas, que a divertiam muito e, ao revelarem-se, a emocionavam. Esta, me comoveu, ao descobri-la agora, pois sua mensagem diz respeito a um momento de profunda desunião e conflito interno desta familia, com nossa irmã Solange e meu marido em guerra contra Rodo e Alma, na disputa da herança de nossos avós. Mas a verdade é que Alma, para salvar a estância, por seu temperamento apaixonado esteve mais próxima de um Dmitri Karamazov, num embate bastante violento com Solange e Geraldo, que gerou até mesmo processos de parte a parte e dois dramáticos julgamentos (vide o romance A Herança, de Alma Welt) antes de poder afinal, como Aliocha, unir a família.

www.almaweltromances.blogspot.com

(Lucia Welt)
Eu estarei aqui depois de tudo (de Alma Welt)
Acabo de encontrar este belo soneto nostálgico, perdido na montanha de papéis da arca da Alma, e que não encontrei publicado (depois de extensa pesquisa) em nenhum dos conjuntos de sonetos já publicados nos blogs da nossa Poetisa. A verdade é que espero encontrar outras jóias como essa neste espólio grandioso dos manuscritos inéditos de minha grande e saudosa irmã, que estou apenas arranhando com estes 25 blogs.
O curioso é que do ponto de vista contextual este soneto contrasta com o penúltimo que eu coloquei aqui ( o n°35 e último que traduzi para o castelhano: "Não estarei aqui quando voltares... " Mas ambos contêm a certeza de sua morte próxima e a convicção de alguma forma de retorno, mesmo que espectral, o que afinal acabou se confirmando, pois ainda a avistamos intermitentemente vagando por aqui, o que nos confrange e desnorteia, pois nos parece que ela não se libertou de sua vida aqui neste plano ou quer nos comunicar algo que não conseguimos entender. Nossos peões, que amiúde a vêm, a chamam "Alma da Pampa"...



Eu estarei aqui depois de tudo
(de Alma Welt)
305

Eu estarei aqui depois de tudo
Quando voltarem as flores no meu prado,
A macieira a florir no pomar mudo
E o casarão estiver todo arruinado,

Suas paredes recobertas pela hera
E no salão a grande mesa abandonada
Onde um dia quando bem guria eu era
Fui belamente adormecida colocada

Pelo fiel Galdério, também ido
Que com Matilde e seu dever cumprido
Foram prestar contas à patroa

Nossa bela, triste e branca Ana
Que afinal como rainha se coroa
E que já não chamo mais... Açoriana!



12/01/2007

Acabo de encontrar este belo soneto nostálgico, perdido na montanha de papéis da arca da Alma, e que não encontrei publicado (depois de extensa pesquisa) em nenhum dos conjuntos de sonetos já publicados nos blogs da nossa Poetisa. A verdade é que espero encontrar outras jóias como essa neste espólio grandioso dos manuscritos inéditos de minha grande e saudosa irmã, que estou apenas arranhando com estes 25 blogs.
O curioso é que do ponto de vista contextual este soneto contrasta com o penúltimo que eu coloquei aqui ( o n°35 e último que traduzi para o castelhano: "Não estarei aqui quando voltares... " Mas ambos contêm a certeza de sua morte próxima e a convicção de alguma forma de retorno, mesmo que espectral, o que afinal acabou se confirmando, pois ainda a avistamos intermitentemente vagando por aqui, o que nos confrange e desnorteia, pois nos parece que ela não se libertou de sua vida aqui neste plano ou quer nos comunicar algo que não conseguimos entender. Nossos peões, que amiúde a vêm, a chamam "Alma da Pampa"...



SONETOS CASTELHANOS DA ALMA -



O último comboio (de Alma Welt)
304

Não estarei aqui quando voltares,
Ó vento-rei do meu sonho passado,
Sinto que as partidas e os “chegares”
Já não escamoteiam o meu fado.

Sei que vou partir, o trem vem vindo
A silvar e a ranger na noite enorme,
Na plataforma já vou me consumindo
A esperar que a alma se conforme.

Espera, dá-me tempo, ó minuano!
E tu, meu trenzinho de fumaça,
Me deixe ficar só mais um ano

Enquanto assisto aqui nesta varanda
O comboio do meu próprio ser que passa
Como o fumo, o vapor e a lavanda...

16/01/2007

Nota

Emocionou-me muito encontrar este soneto manuscrito, com a tinta borrada provavelmente pelas lágrimas de minha irmã. Alma pressentia claramente a sua morte iminente, que ocorreria quatro dias depois (20/01/2007). Derramando por minha vez, no teclado, minhas lágrimas, mal pude digitá-lo e vertê-lo para o castelhano. (Lucia Welt)

___________________________________

El último convoy (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)

Todavía no estaré cuando tornares
Oh! viento-rey de mi sueño pasado,
Siento, pues, que las salidas, los llegares,
Ya no logran engañar este mi hado.

Yo sé que voy partir, el tren viniendo
A silbar y a crujir en noche enorme,
Y en la banqueta voy me consumiendo
A esperar que el alma se conforme.

Espera oh!viento! Tempo, torna a atrás!
Y tu mi trenito de humareda
Déjame restar un año más

En cuanto asisto acá en la baranda
El convoy de mi ser que pasa y queda
Como el humo, el vapor y la lavanda…


O porto (Alma Welt)
303

Ergam-se meus sonhos na alvorada,
Que os quero junto a mim ao despertar
E com eles percorrer minha jornada
Ainda que mal saia do lugar.

Sou toda mente, anseios, devaneios
E meu corpo reflete essa loucura
Pois alvo como a lua em seus meneios
Entre nuvens, ora clara, ora obscura.

E miro horizontes bem mais amplos
Mesmo aqui desta cadeira balançando
A singrar meu olhar por estes campos

Qual caravela perdida neste mundo
De águas rasas todavia procurando
Um porto onde o mar é mais profundo.


21/09/2006

El puerto (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)


Erganse mi sueños en la alborada
Que los quiero junto a mí al despertar
Y con ellos recorrer esta jornada
Aunque no me salga del lugar.

Soy toda mente, ansias, devaneos
Y mi cuerpo refleja esa locura
Blanco como luna en sus meneos
Entre nubes, ora clara, ora obscura.

Y miro horizontes bien más amplios
Mismo acá en esta silla oscilando
A singlar mi mirada por los campos

Cual carabela perdida en este mundo
De aguas rasas todavía procurando
Un puerto donde el mar es más profundo.



Flor noturna (de Alma Welt)
302


Uma flor nasceu em meu jardim
Até então desconhecida, e inusitada
Pois que tem um cheiro doce de jasmim
Não sendo co'este todavia aparentada

Pois de noite evola outro perfume
E eu diria que de modo até perverso
Assim como essa lua que resume
A doce febre de onde nasce o verso.

Mas logo a senti como uma irmã
Das dores e anseios com que lido
De dia a rescender o meu amor,

Pálida e bela, mas altiva barregã
Que se erguesse do seu leito proibido,
A vagar nua entre os seres de labor...

(sem data)

____________________________________


Flor nocturna (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)

Una flor nació en mi jardín
Hasta ayer desconocida y inusitada
Pues que tiene un perfume de jazmín
Sin siquiera ser pariente y ni nada

Pues de noche aromatiza otro perfume
Y yo diría de modo muy perverso
Así como esa luna que resume
Esta mi fiebre donde nace el verso.

Y desde luego la sentí como una hermana
De los dolores con que me he habido
De día a respirar mi oculto amor,

Ramera pálida, por cuanto altiva y vana,
A erguirse de su lecho prohibido,
Desnuda a irse entre los seres del labor.



Sons da noite (de Alma Welt)
301


As paredes vetustas desta casa
Trazem-me os sons de outra era
Como um ruflar de negra asa,
Cheios de dor que reverbera .

Distingo nas noites os gemidos
Das filhas do pobre Valentim,
Os gritos da viúva, os latidos
E logo o uivo de um fiel mastim

Ali, ao pé do corpo que pendia
Da trave do telhado, assim, no sótão
Onde depois o belo Rôdo dormiria

Impávido e inocente o meu irmão,
A embalar seu sono a algaravia
E o sussurrar de um proibido coração.

11/12/2005

____________________________________

Sonidos de la noche (de Alma Welt)

(versión al castellano de Lucia Welt)

Las paredes viejas de esta casa
Me traen los sonidos de otra era
Cual ala negra o un tonel que vaza,
Llenos del dolor que reverbera.

Distingo en la noche los gemidos
De las hijas del pobre Valentim,
La grita de su viuda, los ladridos
Y el aullido triste del fiel mastín

Allá, al pie del cuerpo que pendía
De la viga en el sótano sufrido
Donde el bello Rodo dormiría,

Hermano inocente y confundido,
Su sueño a acunar la algarabía
De otro corazón tan prohibido.

______________________________

Nota
Mais un soneto em que Alma insere menção à sua relação com nosso irmão Rodo. Entretanto pareceu-me detectar aqui, pela primeira vez, uma nota de consciência (não de culpa) da proibição dessa relação.(Lucia Welt)



Mea culpa (de Alma Welt)
300

Estar com meus irmãos e as crianças
É para mim o paraíso nesta terra,
Pois com eles alimento as esperanças
De afugentar de mim o que aberra...

Sim! minhas idiossincrasias,
E ânsias que ora chamo de ilegítimas
Pois faziam sofrer outras gurias,
Minhas irmãs, talvez um tanto vítimas.

Percebo que a ardência de minh’alma
Lhes foi e ainda é bem dolorosa
Por tirar-lhes as certezas e a calma.

Ah! Irmãs de quem tornei-me a agonia,
Mais quisera ser um ser de pura prosa
E menos o vulcão desta poesia!

28/11/2005


Nota

Emocionou-me encontrar este soneto perdido na montanha de inéditos da arca da Alma. Vieram à minha mémória 35 anos de convivência e amor pela doce Alma, que aqui se trata tão duramente. Sim, sofríamos por ela, mas de tanto amor, de tanta admiração impotente pelos seus sofrimentos de guria hiper-sensível. Sua intensidade tirava-nos o fôlego, pois a beleza de tudo que vinha dela era como conviver permanentemente com uma obra de arte viva, genial, surpreendente, comovedora... Ai! minha irmã, tua doçura tudo justificava, teu amor a tudo e a todos... a tua beleza de corpo e alma! Jamais houve um ser como tu!...
(Lucia Welt)


Mea culpa (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)

Estar con mis hermanos y los niños
Es para mí el paraíso en esta tierra,
Pues con ellos alimento los cariños
Que ahuyentan de mi lo que aberra

Me referí a idiosincrasias y manías
Y ansias que ahora llamo ilegítimas
Pues las hacían sufrir, hermanas mías,
Persuadida estoy de que eran víctimas.

Percibo que la urgencia de esta Alma
Les ha sido y todavía es dolorosa
Por sacarles las certezas y la calma.

Ah! hermanas mías de agonía,
Bien más quisiera ser un ser de prosa
Y menos el volcán de esta poesía!


O sentido da vida (de Alma Welt)
299

Quantas vezes em silêncio me pergunto
O sentido de estarmos neste mundo
Embora tal pergunta seja assunto
Dos filósofos em seu labor profundo...

Que por sinal não chegaram a um acordo
Já que tudo permanece misterioso:
A vida, a morte, a dor, o riso e o gozo,
A cotovia e o rouxinol... e ainda o tordo.*

Mas, ai de mim, de nós, da humanidade!
Como cegos tateamos sob o céu
E, laboriosos, erigimos a cidade

Como outrora a grande torre de Babel
(da qual perpetuamos arremedos),
Orgulhoso monumento aos nossos medos.*

12/04/2006


Notas

*...A cotovia e o rouxinol... - este curioso verso é uma graciosa alusão ao famoso diálogo de Romeu e Julieta ao despertar de sua noite de núpcias, lá como aqui exemplo das dúvidas que o amor suscita como ingênua artimanha para perpetuar-se. Quanto ao adendo "e ainda o tordo", além de boa rima trata-se de uma maneira hábil poeticamente de sugerir que tudo, toda a natureza, é um mistério.

*Orgulhoso monumento aos nossos medos- A torre de Babel, considerada um símbolo universal do orgulho humano, é aqui associada ao Medo, o que me parece bastante sutil.(Lucia Welt)


El sentido de la vida (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)

Cuantas veces en silencio me pregunto
El sentido de estarmos en el mundo
Por cuanto tal pregunta sea asunto
De filósofos en su labor profundo.

Que sin enbargo no llegan a nada igual
Pues que todo es sin respuesta y misterioso:
La vida, la muerte, el dolor, la risa y el gozo
La cogujada y el ruiseñor… y el zorzal.

Ay de mí, de nosotros, de nuestra humanidad!
Manoteamos como ciegos debajo del dosel,
Y tontos laboriosos, erigimos la ciudad

Como ayer y hacia arriba, la torre de Babel,
(que todavía perpetuamos sus remedos),
Orgulloso monumento a nuestros miedos.



O espelho do ser (de Alma Welt)
298

Hoje olhei no espelho e vi meu ser,
Quero dizer, a face minha oculta,
Aquela que costuma se esconder
E que não pertence à vida culta:

O ser primevo, o mito primitivo,
Eco primal do grito, não vagido,
Que o homem lançou e foi ouvido
Pela Natura num recuo intuitivo.

Eis o animal de Deus marcado
C’o sinal de distinção no fundo olhar,
Na fronte ereta onde repousa o fado!

E ao mirar assim meus belos olhos
A profunda superfície dos abrolhos,
Tive medo de mim como de um mar...


(sem data)

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El espejo del ser (de Alma Welt)

(versión al castellano de Lucia Welt)


En el espejo hoy me miré y he visto el ser,
Quiero decir, mi faz, aquella oculta
Que todavía se acostumbra a esconder
Y no hace parte de nuestra vida culta:

El ser primero, el mito primitivo
Eco anciano del grito, no el vagido,
Que el hombre ha lanzado y fue oído
Por la Natura en su reculo intuitivo.

He aquí el animal de Dios, marcado,
Con señal de distinción a así mirar
Desde la frente erecta donde posa el hado!

Y sin embargo al clavar mis bellos ojos
En superficie honda y de abrojos,
Tuve miedo de mí como una mar…



A insensata nau (de Alma Welt)
297

Disparam-me das torres pensamentos
Contra o mastro desta nave de sonetos.
Meus bispos e a rainha, muito lentos,
E os peões, ou marinheiros, são suspeitos

De sedição ou motim perto das ilhas
Na insensata nau que é o casarão
Entre as vagas verdes das coxilhas,
E o minuano a soprar... mas no verão.

Porém, poder perdido, perco o punho
De ferro com que manobrava a vela
E o leme que era rota e testemunho

Do meu ser racional e orientado
Com que outrora pilotava a caravela
Do meu sonho lúcido e acordado.

(sem data)



La insensata nave (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)


Desde las torres disparan pensamientos
Al mástil de mis versos dudosos.
Mis obispos y la reina son muy lentos
Y los peones, marineros sospechosos.

Hay motines cerca de las islas
En la nave insensata, el caserón
A singlar por entre olas de cochillas
Y el minuano a soplar fuera de ton.

Dejando el poder al enemigo,
Perdí el puño, el viento de mi vela
Y el timón, la ruta y el testigo

De mi ser racional, aunque abierto,
Que pilotaba, ayer, la carabela
De mi sueño lucido y despierto.



A fada da minha mente (de Alma Welt)
296

Esta noite irei ao meu pomar,
Apesar de escura e enevoada.
Ali estarei com minha fada
Com quem combinei de me encontrar.

Rôdo, mas só ele, está ciente,
Pois os outros não podem suspeitar.
Estou em perigo, ultimamente,
Há quem queira mesmo me internar.*

Na minha "Grande Noite de Walpurgis",*
Quando terminei por levitar,
Todos os deuses vieram me encontrar...

Mas o espanto agora é diferente:
"Ó minha fada, eu sinto quando surges
A partir da minha própria mente!"

18/12/2005

Nota

*"Grande Noite de Walpurgis" - Alusão à "Noite Clássica de Walpurgis", cena apoteótica, magistral e iniciática do Fausto, de Goethe. Trata-se de uma grande reunião ou Orgia dionísiaca, de todos os deuses da Grecia Antiga, a que Fausto assiste com a ajuda de Mefistófeles. A cena é longuíssima, extremamente erudita e cheia de ocultismo. Há mesmo estudiosos que se debruçaram anos a fio sobre o estudo dessa parte do Fausto, inclusive teses de doutorado.
Alma assim se refere à sua experiência mística pagã, de invocação mágica dos deuses e numes do Pampa, diante de sua macieira sagrada do pomar, que está descrita magistralmente em certo capítulo do seu romance A Herança, e sucintamente no seu soneto "Todos os deuses", postado nos blogs Vida e Obra de Alma Welt, e nos Sonetos de Mistérios da Alma. (Lucia Welt)

* ... me internar"- Alma temia ser internada como afinal realmente o foi, numa Clínica pouco depois da data deste soneto. Mas não é verdade que queríamos interná-la. Fomos pegos de surpresa, quando ela sumiu num sábado e foi encontrada por nós que a procurávamos preocupadíssimos, em lamentável estado vagando no bosque, fora de si, com o vestido rasgado e arranhões nos seios e nas coxas, que suspeitamos como vestígios de estupro.(Lucia Welt)


La Hada de mi Mente (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)


Esta noche iré por cierto a mi pomar,
Aunque esté oscura y nublada.
Todavía allí estaré junto a mi hada
Con quien me acordé de encontrar.

Rodo, y solamente él, está esciente,
Pues los otros no pueden sospechar.
Estoy en peligro, últimamente,
Hay mismo quien me quiera internar.

En mi “Gran Noche de Walpurgis”,
Cuando al fin acabé por levitar,
Todos los dioses vinieron me encontrar…

Pero el espanto ahora es diferente:
¡Oh! Mi hada, yo siento cuando surges
De allá, venida de mi propia mente!

Nota
*"Gran Noche de Walpurgis" - Alusión a la "Noche Clássica de Walpurgis", escena apoteósica y magistral del Fausto, de Goethe. Se trata de una grande reunión o orgia dionisíaca, de todos los dioses de la Grecia Antigua, a que Fausto asiste con la ayuda de Mefistófeles. La escena es muy larga y extremamente erudita y plena de ocultismo. Hay mismo estudiosos que se dedican años al estudio de esa parte del Fausto, incluso tesis de dotorado.
Alma así se refere a su experiencia mística pagana, de invocación mágica de los dioces y numens de la Pampa delante su árbol sagrado del pomar, que está descrita magistralmente en un capítulo de su romance La Herencia, y de modo sucinto en su soneto "Todos los dioces", postado en los blogs Vida y Obra de Alma Welt, y en los Sonetos de Mistérios de la Alma. (Lucia Welt)

* ... me internar"- Alma temía ser internada por cuanto realmente lo ha sido, en una Clínica poco tiempo después de la data deste soneto. Pero no es verdad que quisiéramos internarla. Hemos sido sorprendidos, cuando ella desapareció en el sábado y fué finalmente encontrada por nosotros que la buscábamos muy preocupados, en lamentable estado vagando en el bosque, fuera de si, con el vestido roto y arañazos el los senos y en las piernas, que sospechanos vestigios de abuso.(Lucia Welt)

Testamento (de Alma Welt)
295

O meu Pampa é um sonho derradeiro
E primevo ao mesmo tempo, mas um sonho
De Deus, dos deuses e onde ponho
Todo o peso do sentir e ser, inteiro.

Aqui é o centro, o ponto, o fulcro
De onde avisto o mundo que me é grato,
Não o vale de sombras do contrato,
Mesmo que aqui cavem meu sepulcro.

E quando eu morrer, fique bem claro
Que não tive queixas nem rancores
Embora tenha tido as minhas dores.

Pois viver a vida em plenitude
Foi privilégio, conquanto não tão raro,
Mas certamente a minha máxima virtude.

14/01/2007


Testamento (de Alma Welt)

(versión al castellano de Lucia Welt)

Mi Pampa es mi sueño postrero
Y primero también, pero un sueño
De Dios, de los dioses, y el sendero
De mi sentir y ser, que no es pequeño.

Acá es el centro, el punto, asiento
Donde miro el mundo que me es grato,
No el vale de las sombras del contrato,
Aunque acá me acabe el dulce aliento.

Y cuando me muera, esté bien claro
Que no tuvo quejas ni rencores
Por cuanto haga sufrido mis dolores.

Pues vivir la vida en plenitud
Fue privilegio, todavía no tan raro,
Sin embargo, mi máxima virtud.



Das noites no jardim (de Alma Welt)
294

Guria apenas, do quarto meu, fugia
Pela janela, de noite, já contei,
Para ir ao jardim que tanto amei
Para ver dos pirilampos a folia.

E rodava sob o meu lustre da lua
A branca camisola qual princesa
Que valsasse num palácio de grandeza
Com a minha sombra logo nua.

E então me deitava, esfusiante,
No tecido, assim, pra não coçar
E me punha branca a me lunar

Sentindo que meu corpo coruscante
Estava ali, aberto, sob o olhar
De meu irmão, no sótão, vigilante.

(sin data)


Noche en el jardín (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)


Cuando muchacha de mi cuarto yo huía
Por la ventana, de noche, ya he narrado,
Para irme al jardín que he tanto amado,
Las luciérnagas a darme su folía.

Como quien bajo la luna se demuda,
El camisón rodaba cual princesa
Que valsase en un palacio de grandeza
Con mi sombra tan luego o ya desnuda.

Sin embargo me acostaba, así, radiante,
En la enagua, sí, para no rascarme
Y me ponía cruda y a mostrarme

Y sentía que mi cuerpo brillante
Estaba allí, abierto, bajo el ojo
De mi hermano, atento como un zorro.



De nuvens e Paciência (de Alma Welt)
293

Aprendi das nuvens as canções,
Suas sutis mudanças de formato,
De peso, tons, e seu contrato
Com o rei dos raios e trovões.

Foi Galdério, o montevideano
Que criado na Pampa oriental
E guiando a charrete ano após ano
Me doava ali seu cabedal,

Sua grande bagagem de experiência
Contemplativa, ali, na sua boléia
Ao som do trotar da Paciência,

Sim, o nome da egüinha atrelada
Que envelheceu sem ter idéia
Do quanto era rica a nossa estrada.


(sem data)


De Nubes y Paciencia (de Alma Welt)

(versión al castellano de Lucia Welt)

De las nubes aprendí el canto bueno,
Sus sutiles mudanzas de formato,
Tonalidades, pesos y el contracto
Que tienen con el rayo y el Rey Trueno.

Fue Galderio, montevideano y peón,
Que criado en la Pampa oriental
Conducía año a año el carretón
Donándome allí su gran caudal

Su enorme bagaje de experiencia
Contemplativa allí en su asiento,
Al trotar de nuestra Paciencia.

Sí, el nombre de la yegua atraillada
Que de ojos bajos, añejada y sin aliento
No logró comprender nuestra jornada.



O jardim das memórias (de Alma Welt)
292

Minhas crianças amadas me rodeiam
E me fazem saber que sou feliz,
A mim, que não sou simples aprendiz
Pois beleza e alegria me permeiam

Desde guria, aqui, por estes pagos
Em torno ao casarão na pradaria:
De mãos dadas com Rôdo eu corria,
E os dedos já sentiam seus afagos

Que depois, no bosque, ou na cascata
Se estenderiam aos meus pequenos seios
Incipientes e brancos como nata.

Então eu me enterneço duplamente
Ao brincar neste jardim com seus enleios
Que me levam a mim mesma novamente.



24/11/2006


Exorcizando (de Alma Welt)
291

Matilde veio logo me avisar
Que uma sombra rondou o casarão
E parou de frente ao nosso sótão,
Depois partiu no rumo do lagar.

"É o Valentim!" ela adverte-
"Que olhou para onde se enforcou,
Voltou para onde o vinho verte
E ali novamente se afogou."

E eu, a quem não custa espicaçar,
Saí no temporal e fui às uvas
Para o tal fantasma exorcizar:

"Perdoa, a ti me dou, tardia embora,
E me desnudo sob o frio de tuas chuvas
Que são as tuas lágrimas de outrora!"

(sem data)


Nota

Valentim- Para quem ainda não sabe ou não leu o romance autobiográfico da Alma "A Herança", Valentim Ferro foi o último proprietário gaúcho autêntico de nossa estância (antiga Querência Farroupilha, agora Sta Gertrudes) e que endividado acabou vendendo sua propriedade para o nosso avô Joachin Welt, em seguida por desgosto enforcando-se no sótão do próprio casarão. Alma conta como nosso avô narrou a ela ter encontrado o corpo de Valentim, ainda quente como o mate fumegante esparramado da cuia (e bomba) sob os pés do enforcado, este todo ataviado nas sua melhor bombacha, botas, esporas, faixa, chapéu, lenço vermelho farroupilha, e tudo.
Alma dizia ter tido vários encontros com o espectro do infeliz proprietário autêntico derradeiro, com o qual ela acreditava termos uma dívida insaldável, usurpadores que éramos desta propriedade farroupilha tradicional, nós, "boches arrivistas" que viemos plantar uvas numa terra tradicional de gado, charque e mate. (Lucia Welt)


Flor de Fobos (de Alma Welt)
290

Encontrei no jardim de minha avó
Uma flor inusitada e ignota
E que parecia muito, muito só
Como um forasteiro em sua rota

Por entre os homens e as aléias.
Bah! Que solitários são os lobos
Rejeitados por suas alcatéias,
Que vagam a despertar aquele Fobos!

Então eu, condoída, sim, deixei-a,
Curiosa para ver se explodiria
Em novas flores formando sua aldeia.

Todavia ali voltando todo dia,
Eu, pasma, a encontrava orgulhosa
Por ser única, tão só e... tão formosa.

18/11/2006


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Flor de Fobos (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)

Encontré en el jardín de mi abuelo
Flor ignota, sin nonbre o heredero
Y que, muy sola, allí, me huelo
Que es como, así, un forastero

Por entre los hombres y su mando.
!Oh! Que solitarios son los lobos
Cuando desechados de su bando,
A vagar despiertan aquel Fobos!

Sin embargo, conpungida, la he dejado
Curiosa para ver se explotaría
En nuevas flores y en su propio prado.

Todavía, allí tornando todo día
Yo, pasmada, la encontraba orgullosa
De ser única, tan sola… y tan hermosa.


Não cantarei de amor... (de Alma Welt)
289

Não cantarei de amor mais do que o faço
Ao contar a saga do meu ego
E as estrepolias com que traço
Meu rumo e o sonho a que me entrego

Ao simplesmente viver a minha vida
Com toda a intensidade da alegria
E a louca intimidade compartida
Com tantos (que jamais me encolheria).

Assim, cantando-me a mim mesma,
Ouvi alhures: “Ah! Ególatra sublime...”
Como se isso fora um abantesma...

Até (pasmem!) compreender que ao fazê-lo
Meus versos pertenciam a certo time
Que tem em Wordsworth seu modelo...

06/02/2005


Nota

Percebe-se que Alma, com "ególatra sublime" quis se referir ao conceito de "egotista sublime" usado pelo grande poeta romântico inglês John Keats (1795-1821) numa de suas famosas cartas. Certamente Alma preferiu a paráfrase por questão de rítmo no verso. Naquela carta, Keats coloca o seu contemporâneo William Wordsworth (1770-1850) como exemplo do "egotista sublime", isto é, o poeta que falando de si em termos ideais se erige como arquétipo, na medida em que, usando como tema sua própria experiência cotidiana existencial transfigurada pela arte, fala por toda humanidade. (Lucia Welt)


No cantaré de amor (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)

No cantaré de amor más que lo hago
Al narrar la saga de mi ego
Y las picardías con que halago
Mi destino como sueño a que me entrego

Por simplemente así vivir mi vida
Con la intensidad de la alegría
Y la loca intimidad compartida
Con tantos (que jamás me encogería)

Sin embargo, cantando voy mi misma
A oír que soy "ególatra y sublime”
Y como se yo fuera una papisa

Hasta que (usted pasme) he entendido
Que mi verso con un otro ilustre rime
Pues Wordsworth lo habría conocido...


Odisseu (de Alma Welt)
288

"Somos para a Morte", disse alguém,
E desde então eu me pus a meditar,
Coisa inusitada para quem
Todas as dádivas vieram se somar.

A beleza é vã, efêmera, fugaz,
Diz Matilde, o que a Mutti já dizia,
E eu desconfio que apesar de pertinaz,
Tal pensamento deriva da apatia.

Ah! Odisseu, meu grego predileto,
Que disseste (e por isso foste honrado)
O quê é o homem? Cabal, doido completo

Que se acaba com um simples resfriado
E que no entanto, aqui como em Elêusis,
É capaz de afrontar os próprios deuses!


09/07/2006

Odisseu (de Alma Welt)
(versión al castellano por Lucia Welt)


A la muerte somos, uno ha dicho bien
Y desde luego me puso a meditar,
Cosa muy inusitada para quien
Todas las dádivas vinieron acrecentar.

Matilde ha dicho y la Mutti ya decía,
"La belleza es vana, efímera, fugaz",
Y yo supongo, aunque pertinaz,
Tal pensamiento redunda en apatía.

Ah! Odisseu, mi griego favorito
Que dice (y por eso fue alabado),
Que es el hombre?! Cabal, loco bendito,

Que se acaba con un simple resfriado
Y todavía, acá como en Eleusis
Es capaz de afrontar sus propios dioses!



A caravela (de Alma Welt)
287

Lanço no papel minha experiência
De ser o fulcro ou centro desta saga
Tão amada, vivaz, com tal ardência,
Como um druida, bardo ou velha maga.

Nada de queixumes ou lamento,
Mas afirmação total de vida
Que aos outros possa ser alento,
Inspiração vital e comovida.

Pois sei que a vida é mesmo bela
E o frágil ser humano, interessante
Como pode ser imenso e triunfante!

Eis porque vago pela face do papel
Como tardia, embevecida caravela
Fazendo deste espelho o próprio céu.

1401/2007



La carabela (de Alma Welt)
(versión al castellano por Lucia Welt)


Lanzo en el papel mi experiencia
De ser el centro mismo de esta saga
Tan amada, viva, y con vehemencia
Como un druida, bardo o vieja maga.

Nada de quejas, lloros o lamento,
Pero afirmación total de vida
Que a otros pueda ser aliento,
Inspiración vital y conmovida

Pues sé que la vida es mismo bella,
El fragil ser humano, interesante:
Sin embargo grande y triunfante.

Así navego en la net o papel viejo
Como tardía, orgullosa carabela
Haciendo acá mi cielo de este espejo.



O eterno retorno (de Alma Welt)
286

Contarei e cantarei até o fim
Dos meus dias como vou ao meu irmão
Encontrá-lo alta noite no seu sótão
Para entregar-me a ele e ele a mim.

E como, tateando no escuro
Nos longos corredores, já ardente,
Eu me dispo no caminho, de repente
Naquele impulso claro e escuro

Que me leva assim a dar-me e dar-me
E exausta adormecer sobre seu ombro
Depois de tanto cavalgar a sua carne.

E como, adormecida, recomponho
A clara roda de ir ao seu encontro
Na obscura clareza do meu sonho.

(sem data)
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El eterno retorno (de Alma Welt)
(versión al castellano por Lucia Welt)


Cantaré y cantaré hasta el fin nuestro,
Como voy tan repetido al mi hermano,
Encontrarlo, alta noche, en su sótano
Para entregarme a ello, por supuesto.

Y como, palpando el aire oscuro
De los corredores onde, ardiente,
Me desnudo en el camino, de repente
En un raro impulso claro y puro

Que me lleva así a darme y darme
Y exhausta dormir con ello adentro
Después de cabalgar tanto su carne

Y como recompongo el diseño
De la rueda de irme al su encuentro
En la oscura claridad de nuestro sueño.



A Fronteira e o Portal (de Alma Welt)
285

Saio de manhã com cuia e bomba
A vagar por minhas velhas trilhas
Até rondar o bosque em sua lomba
Que nasce no sopé destas coxilhas.

Ali penetro então chimarreando
Aquecida por dentro pelo amargo
Para ouvir a natureza despertando
E o meu alento bem mais largo.

E logo tomada de entusiasmo
Me ponho a correr por entre os troncos
E a girar no centro de um orgasmo

Até desfalecer numa clareira
Cercada por seres nada broncos,
Abertos o Portal e a Fronteira...

(sem data)

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La Frontera y el Portal (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)


Salgo yo, la calabaza y su aroma
A vagar por mi querida senda vieja
Hasta rondar el bosque en su loma
Que nace en la falda de la sierra.

Allí entro todavía mateando
Calentada por el sabroso “amargo”,
A oír la Natura despertando
Y también mi aliento bien más largo.

Y luego dotada de entusiasmo
Me pongo a correr por entre troncos
Y a girar en el centro de un orgasmo

Hasta quedarme desnuda y irreal,
Pero cercada por seres nada broncos
Y abiertas la Frontera y el Portal.

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Nota
Acabo de encontrar este curioso soneto manuscrito entre os papéis da Alma na sua arca, e dei-me conta de que nunca foi publicado. Apressei-me em digitá-lo e colocá-lo no seu blog dos Sonetos de Mistérios da Alma. Mas logo percebi que se trata, na verdade, de um soneto erótico, embora simbólico e velado. Não preciso dizer o que são "o Portal" e "a Fronteira". Ri muito e mais saudades tive de minha extraordinária irmã, de sua intensidade vital e de seu humor. (Lucia Welt)



Se me perguntarem... (de Alma Welt)
284

Se me perguntarem o que quero
Com tanto escrever, em catadupa
Soneto após soneto, eu reitero
Que isso me elimina toda a culpa.

Sim, a que se instala em nossa alma
Com o primeiro vagido após o tapa
E faz o ser humano ter um mapa
Do inferno gravado em sua palma.

Em sendas ocultas e entrelinhas
Eu vou, vago, vôo e deixo ir-me
Ignorando as coisas comezinhas.

Escrevendo recupero a inocência
E posso tudo, e na alma permitir-me
Ir muito além da dor e da demência.

15/12/2005

Nota
Ao encontrar há pouco este soneto, apertouse-me o coração, pois pela data percebi que fora escrito poucos dias antes da sua internação na Clínica em Dezembro de 2005, que tanta preocupação e dor nos causou, inclusive com sua fuga e percalços em caronas de caminhão pelas estradas do nosso Pampa. Este soneto testemunha a luta heróica da Alma para fugir "da dor e da demência" que rondavam a sua alma de poeta, de artista predestinada e de mulher muito bela, excepcionalmente pura e ardente.(Lucia Welt)


Se me preguntan... (de Alma Welt)

(versión al castellano de Lucia Welt)
Me preguntan que quiero yo con eso
De tanto escribir, en catarata,
Soneto tras soneto, se este peso
No representa el fardo de una rata,

Yo digo que eso por contrario
Descarta la culpa que se instala
En nosotros con aquel golpe primario
Que ha de hacer la vida entera mala,

En senda, trilla y entrelínea
Yo me voy vagando o a volar
Ignorando las cuentas por pagar.

Escribiendo recupero la inocencia
Y todo puedo, en el alma curvilínea
Driblando el dolor y la demencia.



Minha "Estrela de Absinto" (de Alma Welt)
283

Estrela minha, a mim mesma me revela!
Eu te invoco como outrora o Druida
Ou muito antes o rei da torre aquela
Etemenanki que em Babel foi destruída!

Vem ao meu encontro e me desvia
Do fatal caminho que pressinto,
Eu sei, estamos todos nessa via,
Na rota de uma estrela de Absinto,*

Mais sonhos, mais delírios, mais anseios,
Ainda não cumpri meus devaneios
E ainda faltam centenas de sonetos,

Cavalgadas, êxtases, amores,
Vagar por entre temas e motetos
A colher emoções como se flores!

19/12/2006


Nota
* Estrela de Absinto -Obra de Oswald de Andrade, 1927. A expressão se refere à uma estrela apocalíptica, para alguns místicos e esotéricos caracterizada como o planeta Vênus(estrela Dalva). Absinto: bebida muito consumida na Belle Époque parisiense, e que, com o ópio, custou a vida de muitos poetas e pintores. No Apocalípse de São João, Absinto é o nome de uma estrela da destruição que cai sobre as fontes de águas e os rios, no final dos tempos (um meteorito?).Entretanto, não está claro, no poema, em qual sentido Alma a está usando. (Lucia Welt)


Mi estrella de Absinto (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)


Mi estrella, me reveles a mi misma!
Yo te invoco como otrora el druida,
O antes aquél rey de gran carisma
Aunque tuve su alta torre destruida!

Vien a mi encuentro y me desvía
Del fatal camino que presiento.
Estamos todos, yo lo sé, en esa vía,
De Absinto la estrella como aliento.

Quiero más sueños, delírios, nuevos temas,
Aunque no he cumplido mis proyectos
Y hagan falta todavía cien poemas,

Cabalgadas, éxtasis, amores,
A vagar por entre mis versos selectos
A coger emociones como flores!

Nota
* Estrella de Absinto -Obra de Oswald de Andrade, 1927, famoso romancista y poeta brasileño). La expresión se refere a una estrella apocalíptica, a algunos místicos y esotéricos caracterizada como el planeta Venus (en el Brasil, estrella Dalva). Absinto: bebida muy consumida en la "Belle Époque" parisiense, y que, con el opio, ha costado la vida a muchos poetas y pintores. En el Apocalipse de San Juan, Absinto es el nombre de una estrella de la destrución que cae sobre las fuentes de aguas y los rios, en el fin de los tiempos (un meteorito?). Sin embargo, no queda claro en el soneto en qual sentido está empleada la expressión.


Não irei queixar-me ao rei dos pampas (de Alma Welt)
282

Não irei queixar-me ao rei dos pampas,
O Minuano que selou o meu destino...
Não rezarei ao pé daquelas campas
Nem ali tocarei meu violino.

Bah! Tanto me alertaram sobre aquilo
De escolher e abraçar a "vã Poesia"
Abandonando o caminho mais tranqüilo,
Do Lar, e ainda ficando "pra titia"!

Sobretudo não irei me prosternar
Diante da matéria ou de seus signos,
Que não tenho o afã de conservar...

Pois que há muito abri minhas eclusas,
Fiz juras e votos bem mais dignos
E jamais renegarei as minhas Musas!

(sem data)
_______________________________________________

Al rey no iré quejarme (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)

Al rey no iré quejarme, de la pampa,
El Minuano que me conduce al fin;
No oraré al pie de aquella campa
Ni tampoco tocaré mi violín.

¡Ah! Tanto he caminado sobre el hilo
Que en peligros me llevó a la Poesía,
Abandonando el camino más tranquilo,
Tía y soltera acá restando todavía!

Tampoco iré mi cuerpo prosternar
Delante la materia o sus signos,
Que no tengo el afán de conservar…

Pues que ha mucho he abierto mis esclusas,
Y haciendo juramentos bien más dignos
Jamás he renegado aquellas Musas.


A névoa e a Alma (de Alma Welt)
281

Quando a névoa ainda não se alçou
E paira sobre a relva confundindo
Céu e terra como quando começou
O mundo e Deus ainda estava urdindo

A tessitura de seu reino endiabrado,
Depois cheio de tesouros e magia,
Eu sinto que pertenço a este prado
E nutro-me de sua nostalgia.

Mas logo em alegria me desnudo
Pois orvalhada já em minha roupa
Posso sentir-me parte disso tudo:

De Deus o puro caos primevo e vago
Quando tudo ainda era parte dessa sopa
Do grande caldeirão do Eterno Mago...


(sem data)

___________________________________

Nota
Acabo de encontrar na montanha dos inéditos da Alma, em sua arca do sótão, este soneto encantador sobre o qual testemunhei as cirunstâncias de sua inspiração, pois acompanhei uma vez a Alma num de seus passeios matinais, bem cedinho, e a vi impulsivamente desnudar-se para sentir a névoa da alva da manhã em sua pele, no corpo todo, rodopiando de alegria em sua integração sentida nesse "caos úmido". Alma era uma criatura profundamente telúrica e nutria-se, como ela dizia, das forças da terra e do ar, como todos os seres, é verdade, mas com mais intensa consciência poética, se podemos dizer assim, do que a maioria de nós. (Lucia Welt)


La niebla y la Alma (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt0


Cuando la niebla aún no se ha alzado
A pararse de la hierba confundiendo
Cielo y tierra como cuando ha comenzado
El mundo y Dios se estaba urdiendo

La textura de su reino endiablado,
Después lleno de tesoros y magia,
Yo siento que hago parte de ese prado
Y me nutro de su enorme nostalgia.

Pero de pronto me pongo desnudada
Pues aunque orvallada en mi ropa
Quiero sentirme parte, o integrada,

De Dios el puro caos primero y vago
Cuando todo era parte de esa sopa
Del eterno calderón del Grande Mago.



Da vida vivida (de Alma Welt)
280

Por amor, me desnudei a alma
No papel em versos escandidos,
Não me poupei em nada, dei a palma
A ler, como às ciganas os escolhidos.

Sim, por que nelas eu confio
Se vêem em nós o dedo do destino
Ou espada a pender daquele fio.
Mas ouvindo da Gitana o violino

Cantei, dancei, de mim me desnudei
E nos leitos dos amados supliquei
Que tocassem as fibras do meu ser.

E louca, penetrada e fruída
Fui verso e canção pra ouvir e ler
E nada deixei pra outra vida...


17/01/2006

Nota

Mais uma vez emocionadíssima, ao descobrir agora há pouco este soneto, me defrontei com um "testamento espiritual" da Alma, poderoso, de comovente grandeza.
Vou tentar vertê-lo para o castellano para publicar no site La Voz de La Palabra Escrita-Internacional. (Lucia Welt)


De la vida vivida (de Alma Welt)
(Versión al castellano de Lucia Welt


Por amor me he desnudado el alma
En la página de verso encendido
Sin enbargo,siempre he dado la palma
Como a una gitana el escogido.

Si, porque fieles siempre han sido
Y en nosotros veen la oscura gana
O el sable que de un hilo está pendido.
Pero al oír el violín de la Gitana

He cantado, danzado y desnudado,
Y en los lechos de amados, he suplicado
Que tocasen las fibras de mi ser.

Pues loca, tocada o ceñida
He sido verso y canción de oír y leer
Y nada he dejado a otra vida.



A Alma destas águas (de Alma Welt)
279

A trilha que leva à minha cascata,
A cantar percorro todo dia,
Descalça, pois retiro a alpargata
Para sentir do solo a energia.

E logo vou a blusa retirando
Ou o vestido inteiro, se é o caso,
Depois a calcinha, ali deixando
Na senda como rastro e ao acaso

As belas tramas um tanto obsoletas
Pois me dou à transparência destas águas
(que nunca me escondi em vãs anáguas).

Depois saio brilhando, nada feia...
E mais: para atrair as borboletas,
Crua me agacho a urinar na areia.

(sem data)

___________________________

Nota

Encantada, acabo de descobrir na arca da Alma este soneto lindo, ligeiramente erótico, que revela algo que eu mesma testemunhei algumas vezes: nua, molhada e brilhando, Alma urinava na areia da prainha da cascata, e logo ali se fazia uma revoada de borboletas que apreciavam o sal ou a amônia onde pousavam numerosas, sugando, para encanto de minha bela irmã, que eu ficava olhando, admirando, como uma ninfa que ela realmente era. (Lucia Welt)


Alma de estas aguas (de Alma Welt)
(Versión para el castellano de Lucia Welt)

En el camino que leva a mi cascada
A cantar me voy todos los días
Y luego me pongo desmontada
Para sentir del suelo la energía

Y desde luego la camisa allí sacando,
O el vestido entero, si es el caso,
Después las bragas voy dejando
En la senda como rastro y al acaso

De las vanas tramas aúnque hermosas
Pues en la transparencia de la escena,
Jamás he escondido aquellas rosas...

Y me salgo reluciendo, rica y plena
Y más: para atraer las mariposas
Me agacho a orinar sobre la arena.

(sin data)


Dúbios domingos (de Alma Welt)
280

Tenho com os domingos dúbia liga
Pois embora ensolarados em essência
Me fazem ver do Tempo a vã carência
E a tal fugacidade, ó minha amiga.

A contagem domingueira se revela
Ultimamente regressiva e voraz
Embora eu seja jovem, viva e bela,
Já me vejo saudosa a olhar pra trás.

Eis que me sinto assim contemplativa,
Que nunca fui alguém que muito chore,
E me ponho a vagar como uma diva

A colher florzitas como a Core
No seio claro desta natureza viva
Antes que o escuro solo me devore.


28/11/2006


Nota
Acabo de encontrar este belo e impressionante soneto da Alma, que faz ver a persistência de seu pressentimento da morte próxima. Vale aqui relembrar o mito de Core (a Perséfone dos gregos) filha de Ceres, a deusa das colheitas(a Deméter, dos gregos) que estando a colher flores na pradaria, subitamente o solo se abriu e ela foi agarrada pelo deus Hades, do escuro subsolo do mundo (o reino de Hades)onde passaria, por intercessão de Zeus, a pedido de sua suplicante e sofrida mãe, a viver por seis meses, sendo que os outros seis poderia passar com sua mãe sobre os campos. Esses ciclos se relacionavam com o tempo do plantio e o da colheita. (Lucia Welt)


Dudosos domingos (de Alma Welt)
(Versión para el castellhano de Lucia Welt)

Tengo con los domingos una liga
Por quanto solarados en esencia
Me hacen ver del Tiempo la carencia
Y la fugacidad, oh! mi amiga!

La cuenta dominguera se revela
Desde luego regressiva y voraz
Todavía soy jóven, viva y bella
Sin enbargo estoy mirando hacia atrás

Y me siento tan contemplativa,
Jamás ha sido así quien tanto llore...
Y me pongo a vagar como una diva

Que coje florecitas como Core
Nel seño de la Natura viva
Antes que el suelo me devore.


Palavras à cigana (de Alma Welt)
279

Rafisa, lê depressa a minha palma
Mas não pares no meio da leitura.
Sempre o fazes como se uma ruptura
No fio do destino desta Alma.

Eu vejo como fechas minha mão
E o disfarças com um beijo ou sorriso.
Mas não conténs, cigana, o coração
E teu peito que ofega, em prejuízo

Do segredo do que é meu e tu me deves,
Pois se és vidente e quiromante
Honra a tua fama, a mal não leves,

Vai, revela tudo, não importa
Se a Morte for um hóspede galante
Que está prestes a bater na minha porta...

05/01/2007

_____________________

Nota
Descobri emocionada este soneto que mostra como Alma andava cheia de pressentimentos da morte próxima, mas não totalmente consciente, que é como o Destino brinca de se apresentar...
(Lucia Welt)



Palabras a la gitana (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)


Rafisa, lea de pronto mi mano
No te detengas en medio a la lectura.
Siempre lo haces como una ruptura
En el hilo de mi destino humano.

Yo lo veo como miras con cuidado
Y a veces me confundes con un beso;
No te contienes el corazón alborotado
Y tu pecho que se pone teso

Si el secreto revelar no puedes,
Por seres vidente y quiromante
Honra tu fama, y dáme lo que debes,

Vá, revela todo, lea mi suerte.
Que la Muerte sea un huésped galante
Que todavía en mi puerta bate fuerte!



O claro e o escuro da Alma (de Alma Welt)
278

Amanhã verei meu ser refeito
E envolto em aura, libertado,
Serei o ser que sou, o ser eleito
De mim mesma, aceso, iluminado.

Farol na noite eterna de esperança
Ou sol no dia claro sempiterno,
O timbre escolhi eu desde criança
Ao escolher o amor, o bom e o terno.

Mas, bah! se o Cerro esfria e escurece
E pelas faldas onduladas de coxilhas
Do Jarau o minuano escorre e desce,

Da alma o lado escuro me fascina
Ao perceber o quanto, sim, ele me anima,
Esse contraste que produz as maravilhas!

(sem data)

Nota
Com o seu poder de criar ou de realimentar mitos, Alma parece dizer que o minuano nasce no Cerro do Jarau (vide A Salamanca do Jarau, de João Simões Lopes Neto) e quando este escurece e esfria, escorre pelas encostas e corre pela pradaria, como um desbordamento do lado escuro do mundo. (Lucia Welt)


El claro y el oscuro del Alma (de Alma Welt)
(Versión al castellano de Lucia Welt)


Mañana no seré lo que he sido
Pero envuelta en aura, libertada
Yo seré la nueva Alma emplazada
En mi ser verdadero y alumbrado.

Farol en la noche de esperanza
O sol nel día claro y sienpiterno
El timbre he escogido: la abastanza
De mi misma, del bueno y del terno.

Pero si el Cerro se resfria y oscurece
Por las faldas ondeadas de "coxillas"
Del Jarau el minuano escurre y desce

Y del alma el lado oscuro me fascina
Al darme cuenta de cuanto, si, me anima,
Ese contraste que produce maravillas!



Noite Xamânica (de Alma Welt)
277

Quando a noite é quente em meu jardim
Me ponho na varanda, excitada
E logo vou sair fora de mim
Para livre me sentir, e mesmo alada.

E vôo, ah! eu vôo sobre as flores
Pra de cima divisar o meu quiosque
Em que um dia iniciei-me nos amores
Pra depois consagrá-los no meu bosque

Onde então me torno loba ou cadela
Ssschhh!.. a grande coisa, um sábio disse*,
Exige que jamais falemos dela,

Pois me sinto voltar ao animal,
Enquanto vultos negros como piche,
Com seus lumes já me espreitam como tal...

29/06/2006

Nota

*"...um sábio disse"- Penso que Alma, parafraseando, se refere à famosa frase de Nietzsche: "As grandes coisas exigem que não se fale delas. A menos que falemos delas com grandeza. Com grandeza quer dizer: com cinismo e inocência".

Este soneto, de nítida inspiração xamânica, parece insinuar que Alma começa a noite como um pássaro (uma coruja?) e depois se transforma numa loba no cio (cadela), espreitada por uma alcatéia de vultos escuros mas de olhos luminosos. Alma se tranforma no seu "animal de poder". (vide Xamanismo).
(Lucia Welt)



Noche de Chamán (de Alma Welt)


(versión libre al castellano, de Lucia Welt)


Cuando es noche caliente en mi jardín
Me pongo en la baranda y excitada
A mirar la pampa y su negror sin fin
Para sentirme libre, leve y alada

Y vuelo, si, yo vuelo hasta las flores
Para el quiosco ver de arriba
En que un día me he quedado de amores
Que en el bosque he consumado, oh! mi amiga,

Adonde ahora me pongo sin candelas
(cosas hay, ha dicho el Gogh, buen profeta,
que no quieren que las pinten sobre telas)

Pues me siento tornarme al animal
Cercada ya por sombras y repleta
Con el lumen de su frío ojo fatal.



Reencontrando o general (de Alma Welt)
276

Amarrei minha montaria no mourão
Adentrando então a estância estranha.
No peito eu sentia o coração
Pulsando como os palpos de uma aranha

Que aguardasse a si mesma como presa
No centro de uma teia que era o mundo.
E assim eu caminhava muito tesa,
A sentir que o momento era profundo.

Então me vi diante da varanda
Do herdeiro de meu Netto general,
Que tirou o chapéu, como se manda

E mostrando os cabelos cor de nata
Disse: "Voltaste, minha princesa, meu Graal,
Que te espero, há muito, desde el Plata."

(sem data)

Acabo de encontrar este misterioso soneto da Alma na montanha de seus textos em sua arca do sótão. Alma parece querer dizer que, rencontrando o atual descendente direto do general Netto da Revolução Farroupilha, morto misteriosamente na Argentina
(em Corrientes) aqui indicada pela expressão "el Plata", este (por ser uma reencarnação do seu tetravô?) a reconhece como seu último grande amor (Maria Escayola) e a chama de seu "Graal", expressando a grandeza de sua procura romântica. (Lucia Welt)

Reencuentro con el general (de Alma Welt)
(Versión al castellano de Lucia Welt)


Amarré mi caballo en un montón
Delante la hacienda extraña
En el pecho yo sentía el corazón
A pulsar como palpos de una araña

Que aguardáse a si misma como presa
En el centro de una tela que era el mundo
Y todavía caminaba así muy tesa
Por sentir que el momento era profundo

Y fué cuando me ví en la baranda
Del Netto, el general o su heredero
Que se sacó de pronto el sombrero

Y ostentando el pelo color de nata
Ha dicho: tornaste, mi princesa blanda,
Que te espero, hay mucho, desde el Plata.

(sin data)


Palavras ao Vati (de Alma Welt)
275

Dá-me teu colo, Vati, estou carente,
A Açoriana acaba de afastar-me.
Eu sei, ela me acha delinqüente,
Somente tu, ó Vati, sabe amar-me.

Ela diz que me espevito ao ver "um macho",
Tu ou Rôdo, dia e noite, e sem que
Jamais, ela diz, "sossegue o facho"
Mesmo servida a minha quota de rebenque.

Mas, pai, foste tu que me criaste
E me disseste pra ser sempre verdadeira,
Que minha pele já propunha esse contraste

Com, do falso a escura face, escondida,
E que jamais porias na coleira
O ser que iluminou a tua vida!


06/11/2006

Palabras al Vati (de Alma Welt)
(Versión al castellano de Lucia Welt)

Dáme tu cuelo, Vati, estoy carente,
La Azorana acaba de alejarme.
Yo lo sé que me reputan delincuente,
Y solamiente tú sabes amarme.

"Ay! que no puedes ver macho, desde luego,
Tu Vati o el Rodo, dia y noche, sin que
Desdichadamente te despierte el fuego"
Y me sirve mi cuota de rebenque...

Pero, mi padre, ha sido tú que me criaste
Y me alertado a ser siempre verdadera
Y que mi piel propugna este contraste

Con la oscura cara del falseo, escondida,
Y que jamás quisieras ver en la collera
El ser que siempre ha alumbrado tu vida.


A leitoinha (de Alma Welt)
274

Galdério, prepara a tua charrete
Que hoje não quero cavalgar!
Leva-me como quando eu tinha sete
E dormia no teu colo ao regressar

E me tomavas nos braços com candor
Ao salão me transportando sem eu ver,
Me punhas sobre a mesa por humor,
Dizendo: “Hoje leitoinha vamos ter!”

E eu já despertada mas fingindo
Não resistia e gargalhava afinal
Sem ousar abrir os olhos, sensual,

Pois sentia o teu olhar tão inocente
Percorrer meu pequeno corpo lindo
Que queria ser tomado docemente...

09/07/2006

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Fiquei estarrecida ao descobrir hoje este soneto na arca da Alma. Senti-me primeiramente perplexa, depois chorei muito.
Ficou claro para mim, de repente, o gesto insólito, aparentemente incompreensível de Galdério ao pegar o corpo nu da Alma, quando de sua morte afogada no poço da cascata, e vir com ele nos braços como um sonâmbulo para depositá-la sobre a mesa do salão onde começou o seu espantoso velório nu, até ser interrompido pela irupção indignada de Matilde cobrindo-a com uma toalha de mesa, como um sudário.
Vide o blog "Vida e Obra de Alma Welt":(www.almawelt.blogspot.com) onde publiquei, já há tempos, a carta que escrevi na ocasião fatídica, narrando as circunstâncias da morte e do velório de minha amada irmã. (Lucia Welt)

La lechona (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)

Galderio, en el carro "andiamo via"
Pues que hoy no quiero cabalgar!
Recuerdas cuando siete yo tenia
Y dormía en tu cuello, al retornar?

Y me tomabas en tus brazos con candor
Al salón me portando a nueva escena
Y al ponerme en la mesa con humor:
“Hoy habremos lechón para la cena.”

Y yo, ya despertada y disfrazando
No podría contenerme carcajada
Sin osar abrirme el ojo y encantada

Pues que sentía tu mirada inocente
En mi cuerpito tan bonito y ya amando
Que quisiera ser tomado allí, caliente


Nota
Aproveito para republicar aqui um dos Sonetos Pampianos da Alma (o de n° 232) em que ela aborda esse tema, tão terno e sugestivo: o de ser retirada adormecida da charrete e ser carregada por Galdério até a sala do casarão onde era colocada num sofá ou mesmo sobre a grande mesa como ela revelou no soneto acima. Eis o soneto:



Pietà sulina (de Alma Welt)
273

Vinha o gaúcho troncho em sua sela
Ferido por adaga gravemente,
Na mão direita a rédea como vela,
A outra mão a segurar o rubro ventre.

E estacando o seu pingo emfim cedeu,
Fez um aceno vago e foi caindo
Nos braços do Galdério que acorreu
A ampará-lo como a um guri dormindo.

E enquanto a alma ia sem adeus
Eu gravei a cena em minha retina
Como uma Pietà leda e sulina

Pois agora já estava entre os seus
Como o outro na estação divina
Fixando a morte insólita de um deus.


(sem data)

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Pietá del Sur (de Alma Welt)

(Versión libre al castellano de Lucia Welt)

Venia el gaucho curvo en su silla
Herido por espada y ya exangüe
Y en la mano derecha la cedilla
De la rienda rubra de su sangre

Y estacando su caballo me miró,
Ha hecho un gesto vago y se cayó
En los brazos del Galderio decidido
Que lo amparó como a un niño dormido

Y al ver el alma fuera de su campa
Yo gravé la escena en mi retina
Como una pietá honda y canina

Pues ahora ya estaba entre los suyos
Como aquél otro de la trágica estampa
A fijar la muerte insólita de un dios.


(sin data)



Conluios da Noite (de Alma Welt)
272

Elevam-se na noite os murmúrios
Das conspirações que aqui houveram
Nos tempos farroupilhas, e os conluios
Que nos ecos desta casa ainda prosperam.

E ouço: Canabarro se rebela
Contra Bento nosso grande comandante
Enquanto o bravo Netto se revela
O mais fiel amigo doravante.

Mas bah! são as prendas que os inspiram
Com seu doce pranto derradeiro
Na paixão ardente em que deliram,

Juntas, pelos quartos, e ao fogão
Cujas cinzas liberam um rico cheiro
Que, alta noite, invade o casarão...

02/10/2006

Conjuras en la noche (de Alma Welt)
(versión al castellano de Lucia Welt)

Suben en la noche los susurros
De las conjuras que acá hubieron
En los tiempos farroupillas y los turros
Que en esta casa se murieron

Y oigo: Canabarro se rebela
Contra Bento el nuestro comandante
En cuanto el bravo Netto se revela
Un amigo fiel, más adelante.

Pero son las “prendas” que los inspiran
Con su llanto verdadero y los de broma
En la pasión ardiente en que deliran

Juntas en los cuartos y al fogón
Cuyas cenizas aún liberan rico aroma
Que de noche invade el caserón.


Meu overmundo (de Alma Welt)
271

Tive um sonho esta noite, recorrente,
Pois me pareceu bem familiar:
Eu morria jovem, de repente,
E não podia decidir quando voltar.

Antes me era dado ver o mundo,
Mas sem escolher hora e lugar
E teria assim meu overmundo
Pois que Deus me queria premiar.

Mas, bah! eu chorava de saudade
Do meu pampa, estância e casarão,
Minha querência, Rôdo, nossa herdade!

E tanto solucei, e o pé batia,
Que Deus não suportando a confusão
De cabeça me atirou na pradaria!...
14/11/2006

Nota
Surpreendentemente, encontrei hoje de manhã este soneto inédito da Alma, em sua arca, que evidencia que ela conhecia o poema de Murilo Mendes, e que este a inspirou de maneira singular. Mas pode-se perceber também a semelhança da cena por ela descrita com um outro texto, um belíssimo monólogo de Cathy Earnshaw (ou Cathy Lindon), do romance O Morro dos Ventos Uivantes( Wuthering Heights) de Emily Brönte, que Alma amava sobretudo, por sua imensa identificação com a personagem da charneca inglesa vitoriana). (Lucia Welt)


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Mi overmundo (de Alma Welt)

(versión al castellano de Lucia Welt)


Tuvo un sueño esta noche, recurrente
Pues me pareció muy familiar:
Yo moría joven, de repente,
Y no podría decidir cuando tornar

Antes me era dado ver el mundo
Aunque sin escoger hora y lugar,
Yo tenería así mi "overmundo"
Pues que Dios me quería premiar.

Pero yo lloraba en nostalgia
De mi Pampa, hacienda y caserón
Nuestra herencia, Rodo, lo que habría!

Y tanto he sollozado y el pie batía
Que Dios, que no es ningún cabrón,
Me lanzando en la pradera se reía.



Memória do Bosque Sagrado (de Alma Welt)
270

Esta noite irei ao meu pomar
Acender a pira dos meus deuses
Ali eles verão eu me ajoelhar
Como outrora no bosque de Elêusis.

E ao ver o fumo branco ascender
Do nosso mate em proporção secreta,
Eu me regozijarei ao perceber
Que os deuses aceitaram minha oferta.

E então eu abrirei meu coração
Para que vejam o ardor do meu desejo
Que não exclui pureza e devoção,

Pois quero somente preservar
A união de todos em que vejo
A mesma solidão, o mesmo olhar...

24/12/2006

Nota
Encontrei na arca da Alma esta reprodução de quadro de Arnold Boecklin do acervo do Hamburger Kunsthalle, em cartão postal onde no verso ela escreveu este soneto na véspera do seu último Natal. Como podem perceber Alma acreditava ter, numa de suas encarnações, vivido em Elêusis onde fora uma sacerdotisa órfica, do culto de Mistérios daquela doutrina reencarnacionista do século VII A.C., na Grécia. (Lucia Welt)


Aqui estarei... (de Alma Welt)
269

Aqui estarei, meu Rôdo, quando tudo
Naufragar em nós com o navio
Que é este casarão já quedo e mudo
A crepitar como uma vela sem pavio,

E nós, como sombras sorrateiras
Esgueirarmo-nos por estes corredores
Ou por este salão e suas soleiras
Que olharão para os últimos albores

Já a nos ver espectrais em cavalgadas
Ou mesmo a pé a vagar nas pradarias
Nas novas noites, eternas e tão frias...

Ai! Não mais claras manhãs, e orvalhadas,
Onde rindo perdoavas meus deslizes
E eu aos teus, por sermos tão felizes!

14/01/2007

Nota
(Encontrei agora mais este soneto que me fez chorar. Alma previa sua morte iminente e expressava seu amor desmedido por isto tudo, sua vontade de permanecer para sempre por aqui, mesmo vagando, sem manhãs orvalhadas. Mas... ela se via a vagar eternamente com Rôdo, o irmão amado.(Lucia Welt)


De sonhos e de vinho (de Alma Welt)
268

Os sonhos dos meus antepassados
Perpassam meus sonhos, eu percebo,
Mas nem por isso são sobressaltados.
E assim posso amá-los, e os recebo

Densos, encorpados, como o vinho
Que legaram a nós no casarão,
Ali sob meus pés, que os advinho
Dormitando mansos no porão

E que quando vêm à mesa entre risos
E o tilintar dos brindes e desejos
Trazem lágrimas de amor por entre beijos

Que estalam nos lábios como guizos
De uma canção ouvida dos avós
Ou como um só coração dentro de nós.

(sem data)


Meu trem fantasma (de Alma Welt)

267

Venham formas-pensamentos, devaneios,
E invadam-me de noite o casarão!
Meus amores estão longe, e os anseios
Preservam-me da negra solidão.

Mas o vazio... a custo eu o evito
Pois sei que ele, só, pode matar-me.
Venha aquele trem, pois, assombrar-me
Com seus brancos fumos e o apito

Naquela plataforma enevoada
Onde sempre deixei os meus queridos
Para vê-los partir em revoada

Envoltos no vapor de suas glórias,
Me deixando aqui, como os banidos,
Num comboio eterno de memórias...

29/12/2006

Nota
(Acabo de encontrar na arca da Alma, este magnífico e misterioso soneto, até então desconhecido por mim, que evoca como metáfora a estaçãozinha e o trem maria-fumaça que serve as nossas terras, imagem recorrente em outros sonetos e também em crônicas e romances de minha saudosa irmã. (Lucia Welt)
______________________________________

A título de curiosidade republico aqui este soneto da série Pampiana, para evidenciar a recorrência dessa imagem da estaçãozita e do trenzito maria-fumaça que serve nossas terras e que era tão querido por minha saudosa irmã. (Lucia Welt)


Os últimos brindes (de Alma Welt)

266

Por ser filha amada de meu pai
Eu pude acreditar em ser poeta,
E suspeito que o mundo um dia vai
Fruir e degustar a predileta

Nascida sob estrela de abastança,
Interior, quero dizer, e dadivosa
Meu desejo é desbordar-me generosa
Como o cálice servido na festança

Quando o "gáltcho" grato na querência
Começa a discursar aos seus compadres
E a mão já lhe treme em conseqüência

Pois os brindes brotam já em borbotões,
Junto com as juras aos confrades
De veraz fidelidade entre peões.

19/12/2006



Nota

Emocionou-me a descoberta recente de mais esta "profissão de fé" da Alma, mista de saudação (ou brinde) e despedida do seu público como os confrades da festa da Vida. (Lucia Welt)


Sonhos (de Alma Welt)
265

Meu corpo traz em sua memória
O toque e as carícias dos amados,
Homens e mulheres, e a história
Dos murmúrios e silêncios encontrados.

E assim, abandono-me no sonho
Carregada de vívidas lembranças
Como arquivo vivo que disponho
Para os dias de menos esperanças.

Eis porque acordo perturbada,
Menos por carência e mais paixão,
Por vezes uma ânsia exasperada,

E erguendo-me da noite na calada
Vou ao seu leito, em sonho da razão,*
Insinuar-me nua, assim, colada...


(sem data)

*Nota
O fato de Alma ter colocado como epígrafe a famosa frase encontrada numa gravura de Goya da série Caprichos denota a consciência plena de sua relação proibida, já bem conhecida de seus leitores. Todavia sempre achei que a beleza lírica que ela punha na abordagem dessa relação, a fazia transcendente, a justificava e absolvia. (Lucia Welt)


O recurso Münchhausen (de Alma Welt
)
264

Como viver depois de ter vivido
Não o amor mas horror do coração
Após golpe, desonra, humilhação
Ou violação da carne sem sentido?

Como viver com o sonho desfeito
Do que era a própria imagem do viver?
Cair das nuvens ou mesmo desse leito
Onde se foi feliz, e não morrer?

Bah! Há que puxar-se por cabelos
Da alma como o lance do barão
Que afundava só e sem apelos

No poço de uma movediça lama,
E com o baio magro da razão
Alçar-se bem acima dessa cama!


08/03/2002

Nota

Acabo de encontrar mais este soneto inédito da Alma, na sua arca. Publiquei-o imediatamente no blog dela dos Metafísicos. Entretanto detectei nas duas estrofes uma alusão a um estupro real sofrido por ela, não sei se aqui na estância ou em São Paulo. Mas ela se refere a um leito. A julgar por outras narrativas suas eu teria que descartar a imagem de uma cama, que aqui seria meramente simbólica, pois as ocorrências que eu conhecia descartavam esse artefato e mais horrorizavam pelos locais e circunstâncias. Mas, por outro lado, admito a possibilidade de estar equivocada e o soneto da Alma ser uma pura alegoria das desiluções, das dores da alma e da capacidade do ser humano de recompor-se com as próprias forças. Devo lembrar também que a evocação desse episódio das aventuras do famoso barão bávaro é recorrente na obra da Alma, e já fora citado, por exemplo, no final do belíssimo conto Aline, dos Contos da Alma de Alma Welt , publicado pela Editora Palavras & Gestos, de São Paulo.(Lucia Welt)


Agradecida (de Alma Welt)
263

Pelos amores que quis ou que vivi
Nos dias e nas noites estreladas,
Em apelos à lua e às amadas
Estrelas cujas luzes recebi;

Pelo dom que assim me fora dado
Quando erguida nos braços de meu Vati*
Fui consagrada como ser predestinado
A ser um ser de luzes, mesmo um Vate;

Pelas doces coisas que me deram
Aqueles que tão logo rodearam
A guria que em contentar se esmeram,

Mimada, servida, tão louvada...
E a alguns que até me bajularam
Como se princesa fora... OBRIGADA!

16/01/2007

Notas
Descobri nesta madrugada este sugestivo e comovente soneto de minha irmã, que ao mesmo tempo que reflete seu reconhecimento pelos privilégios de sua vida, soa como uma despedida, sim, um agradecimento final de quem está prestes a sair de cena, o que ocorreria quatro dias depois, no fatídico 20/01/2007. E novamente chorei... (Lucia Welt)

* Vati- pronuncia-se Fáti (papai, em alemão. De Vater (pr. Fáter, pai). É como chamávamos nosso pai, o músico, estancieiro e erudito Werner Friedrich Welt.





O fio da navalha (de Alma Welt)
262

Quando penso nos lances que vivi,
Vejo que já estavam em meu destino
E ao passar por eles revivi
Um trajeto antigo e muito fino:

Uma espécie de fio de uma navalha
Em que caminhamos entre abismos
Para subir ao Olimpo ou ao Walhalla
Ou alguns que tais paroxismos.

E depois do caminho percorrido
Quase divididos pelo fio
Chegamos ao plano prometido

Um enorme e belo prado ondulado
Pelo Letes* cortado, aquele rio,
E teremos a nós mesmos alcançado.

09/06/2006

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Notas

Encontrei este soneto manuscrito, solto no meio da papelada da Alma, e dei-me conta de que não o conhecia, não o transcrevera ainda nos seus blogs. Acabo de publicá-lo nos "Sonetos Metafísicos da Alma", que recomendo aos leitores:
www.sonetosmetafisicosdealmawelt.blogspot.com (Lucia Welt)

Letes- rio do esquecimento que cortava a planície do mesmo nome, e de cujas águas as almas dos mortos eram obrigadas a beber, esquecendo assim a sua vida anterior antes de escolherem sua nova vida. Ao todo passamos por dez encarnações em cada ciclo de mil anos, segundo Platão no mito órfico de Er, nas últimas páginas de A República.


Altas horas (de Alma Welt)
261

Altas horas, o sono interrompido
Pelas batidas do relógio pendular
De meu avô, o boche pouco lido
Que o instalou na sala de jantar

Para ser um marco ou referência
De sua passagem tão austera
Por este casarão e sua esfera:
O vinhedo, o pomar e a querência...

Então eu me levanto e saio nua
Quando estamos do verão no suadouro
Ou de camisola, menos crua,

Para ir ao mundo dos meus livros
Pousados nas estantes, logradouro
Dos mortos que permanecem vivos.


17/12/2006

Nota:

Não paro de descobrir novas preciosidades da Alma na sua arca do nosso sótão. Seus sonetos (já passam de mil os que publiquei nestes seus 22 blogs) constituem por si só um corpo de obra monumental, sem contar os textos em prosa, contos e crônicas, lendas e romances. Este soneto me encantou sobremaneira, pois, como testemunha, quantas vezes também despertei com as sonoras e sinistras badaladas do relógio e fui encontrar a Alma, linda e nua a ler na poltrona do escritório onde adormecia novamente com freqüência, até ser descoberta ali, nesse estado, por nossa mãe, que a arrastava dando-lhe lambadas até o quarto, ou por nosso Vati, que ao contrário a carregava nua no colo, com carinho, de volta ao seu leito.(Lucia Welt)

Meu Pampa verdadeiro (de Alma Welt)
260

Para além do meu jardim e do vinhedo
Começa o meu pampa verdadeiro,
Bem mais que de um mar o arremedo,
As ondas em que o “gaucho” é marinheiro:

As coxilhas ondulantes, femininas,
Semeadas de intermitentes frondes
Dos umbus que coroam as colinas
Onde senta o peão mirando os “ondes”

Para logo remontar o fiel pampa
A galope desatado atrás da rês
Ou as bolas girando, aquelas três

Pra bolear as pernas de uma ema,
Ou o laço enroscar num par de guampa
Como quem lança o fecho de um poema.

04/12/2006
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Encontrei recentemente mais estas duas jóias de minha irmã (na montanha de papéis dos inéditos da sua obra, na arca do nosso sótão) que se enquadram na série "Sonetos Pampianos" que eu precipitadamente fechara em 258. As novas descobertas deste tipo estou agora publicando aqui e no blog dela entitulado "Sonetos Gauchescos da Alma" (Lucia Welt)

Meu evangelho do Pampa (de Alma Welt)
259

Por esta manhã que me acordou
Eu sigo pela senda renovada
Que me confirma onde Amor brotou
Quando dei por mim tão deslumbrada

E era a guria apaixonada
Por tudo e por todos nestes prados
Em que renasci, pois transplantada
Viera de uma terra de emigrados,

Lá do Novo Hamburgo, Hamburgo Velho
Que a mim me dera só germanidade
Faltando do meu Pampa o evangelho

Que consiste na amplidão da herdade
E o meu senso de vôo (bah! não riam!)
Em que corpo e alma se uniriam...

16/11/2006

A Carruagem (de Alma Welt)

(Este é o último soneto da Alma, escrito na véspera de sua morte.)

(258)

Um piano toca no salão!
Ah! e não fui eu que coloquei
Um CD ou um velho long play,
Talvez seja o Vati, e então...

Ele voltou! Sim, ele me quer!
Vou ao seu encontro e sou mulher!
Sim, ele vai ver agora sou
Pelo menos a guria que sonhou.

Olha, Vati, há muito não me vias,
Mas de verso em verso muito errei
Pelo mundo, a viajante que querias...

E agora, com toda esta bagagem,
Leva-me contigo que eu irei
Quietinha, assim, na carruagem!

19/01/2007

Nota da editora:

Este soneto, o último da vida e da obra da Alma, publicado por ela no Recanto das Letras, tocou muitas pessoas que vinham acompanhando a série pampiana, publicados um ou mais por dia, em tempo real. Os leitores talvez sentiram que se tratava de uma despedida, mas não conscientizaram, pois as leituras registradas desse soneto só dispararam quando coloquei na página de minha irmã (por encontrá-la com a senha salva no seu computador) o anúncio de sua morte, com detalhes, o que indignou a muitos, e peço desculpas. A partir do momento da publicação do anúncio fúnebre, as leituras deste soneto foram rapidamente para mais de 300 registradas nos cinco dias seguintes,enquanto o total das leituras dos textos da Alma subiram mais 2.000 atingindo a marca de 14.000 e tantas, o que mostra a curiosidade válida, ou mórbida, não julgo, que as últimas palavras de um(a) grande poeta causam nos seus pares ou mesmo no público em geral. (Lucia Welt)




Canto da lua pálida (de Alma Welt)
257

Vai a vaga lua após as chuvas*
No meu pampa como barca solitária,
Nave fantasma, revolta e passionária
Em farrapos sobre mar das minhas uvas*.

Então saio pro jardim, vou ao vinhedo
Ao encontro da nave que me anima
A deixar-me lunar em seu segredo
Para saber o fim que me destina

Pois com meus alvos braços estendidos
Para o alto clamo a indagação
De quais os meus sinais e seus sentidos

E antes que a clareza se me esvaia,
Meus joelhos dobram e vou ao chão
Enquanto a lua pálida desmaia.*

17/01/2007

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Nota da editora

Este belíssimo soneto recém encontrado na arca da Alma, tanto se encaixaria nas "Canções da Lua", como nestes Pampianos. Impressiona-me também como ele revela o pressentimento da Alma de seu trágico destino próximo.

*Vai a vaga lua após as chuvas- Percebe-se aqui os ecos do título do filme magnífico de Kenzo Misoguchi, de 1953, "Contos da lua vaga após a chuva", que a Alma viu em DVD.

* Nave fantasma, revolta e passionária/Em farrapos...- Imagem maravilhosa que sugere uma nave farroupilha (em farrapos ) como a de Garibaldi, navegando sobre o mar das uvas do nosso vinhedo


*...a lua pálida desmaia- Alma quer dizer que a lua desfalece para não responder ao ser questionada pela Alma sobre o seu destino iminente.


Lindas manhãs da minha juventude (de Alma Welt)
256

Lindas manhãs da minha juventude!
Sofro por amá-las e perdê-las
Quanto maior a plenitude,
Por saber que não posso detê-las.

No despenhadeiro meu das horas
Quisera não ser tão consciente
Do fatal desfecho inclemente
Que tu, ó mente, corroboras!

Todo o meu ser se inclina ao poço
Na vertigem que é a minha estrada,
Que projetei depressa num esboço

De amor e de beleza pura ânsia
Que parece o meu pingo em disparada
Pelas sendas sagradas desta estância...

18/01/2007


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Nota da editora

Acabo de encontrar ainda este soneto, certamente da série Pampiana que eu pensava encerrada em 256. E percebo, estarrecida, que este seria, inclusive pela data, o penúltimo escrito por minha irmã que já antevia o seu poço fatal (da cascata) e para ele se dirigia conscientemente como o Cristo no Horto, se me é pemitido tal comparação. Agora que estou convencida de que minha irmã não se suicidou, mais claros e maiores me parecem seu Getsêmani e sua tragédia. (Lucia Welt)
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04/03/2008



Perigos do não mirar (de Alma Welt)

255

Dedicarei ao Galdério uma loa
Por peitar um peão desembainhado,
Que ao que parece o queria degolado
Por ser fiel amigo da patroa.

Então, assim que estava desarmado
Interpelei o peão severamente:
"Por quê estás assim tão exaltado,
Não vês que o Galdério é boa gente

E repete as ordens que lhe passo?
Como a todos, pra que ninguém se fira
Acaso não te dou o mesmo espaço?

E o gaúcho envergonhado revelou:
"Não suporto saber que tu le mira
Nos olhos e os meus tu nunca olhou!"


(sem data)
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Da dupla existência da Alma (de Alma Welt)

254

Ondas de amor e de delírios,
Ventos de amar e exaltação,
Tempestades de rosas e de lírios,
Galopes pelas plagas de amplidão,

Eis a que chegou a minha vida,
Encerrada em minha pele sem descanço,
De desejos, febres, erros, e a lida
De encontrar na poesia o meu remanso.

Mas, bah! Não há pausa na poesia,
A vida continua em sua ânsia
De mais e mais viver e se extasia

Com a dupla existência, e eu pasmo,
De viver o sonho desta estância
E pô-lo no papel como um orgasmo!...

12/01/2007
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03/03/2008
As ausências do Galdério (de Alma Welt)

253

Galdério, factotum incansável,
Vem ultimamente se ausentando
Com a sua charrete indispensável
Nos tempos do Vati aqui reinando.

Então hoje cedo fui mais fundo:
"Galdo, me permite perguntar
O que tanto fazes lá no mundo
Onde "gáltcho" como tu não tem lugar?"

"Não foste tu mesmo que disseste
Que querias morrer sem mais deixar
A planura onde está tudo que preste?"

Mas o gringo sério logo emenda:
"Princesa, tenho ido alimentar
O peão de quem mi madre foi a prenda."


09/11/2006
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De sombras e aromas (de Alma Welt)

252

As sombras do passado desta estância
Continuam a crescer e a ameaçar.
As noites geram medos e a ânsia
De uma antiga dívida saldar:

A do boche, o nosso avô Joachim
Que ao comprar a terra em desgraça
Deixou pros meus irmãos e para mim
Um patrimônio com peso de uma raça.

Aqui acamparam os farroupilhas,
Nesta mesa além do clã do Valentim*
Sentou Bento Gonçalves* com as filhas.

Sete mulheres* deitaram-se nos quartos
E ainda sinto o cheiro do alecrim*
E os gemidos, dos amores e dos partos...

05/12/2006

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Notas da editora

*Valentim- Valentim Ferro o antigo dono de nossa estância, que arruinado a vendeu (suicidando-se em seguida) para o nosso avô alemão Joachim Welt que plantou um vinhedo, transformando-a de estância de gado e de charque em produtora pioneira de vinho em pleno pampa

*Bento Gonçalves - O principal comandante da Revolução Farroupilha contra "os imperiais".

*sete mulheres- referência à mulher e filhas de Bento Gonçalves (vide "A casa das sete mulheres", magnífico romance da gaúcha Letícia Wierzchowski.

*alecrim- além de planta odorífera e condimento muito comum aqui no sul, do ponto de vista simbólico, muito a propósito no soneto da Alma, é a erva da recordação

(Lucia Welt)
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A blefadora (de Alma Welt)

251

Irmão, dá-me a mão, ó meu amigo
Entre este verde e o azul celeste!
Amanhã não estarás comigo
Mas sim na venal Punta de Leste.

À mesa, com as cartas, nem te lembras
Da dama com quem corres estes prados,
E só verás rainhas de outras lendas,
Valetes, reis e coringas abobados.

Embora saibas sempre que te quero
E a mão que tenha seja ruim,
Blefo ao fingir que não te espero.

Bah! Como sou boa jogadora!
Minhas cartas a esconder de mim
Numa aberta caixa de Pandora...

16/01/2007
Postado por Lúcia Welt às 9:50 AM 0 comentários
Pedindo emprêgo (de Alma Welt)

250

O peão batendo esporas se achegou
Tirando o chapéu mas sem modéstia,
E pra justificar que o tirou
Com rubro lenço secou a alta testa:

"Buenas, comadre, com quem falo?
Preciso falar com o patrão,
Venho vindo de lá da São Gonçalo
Onde dei de prancha num poltrão

Que sem competência ou a machesa
Perante o povo, a Pampa e o pampeiro
Quis tirar-me a china e a realeza.

Mas parece que falo com a rainha...
Poderás ver que sou bom cavaleiro,
E mantenho minha faca na bainha."

10/07/2006
Postado por Lúcia Welt às 8:14 AM 0 comentários
02/03/2008
O cavaleiro (de Alma Welt)

249

Quando guria eu andava pelo prado
A colher flores do campo, já contei,
Mas algo aqui eu nunca revelei,
Que é como encontrei-me com meu Fado.

No meio da extensa pradaria
Vinha vindo o cavaleiro embuçado,
Até que ao deter a montaria
Pude sentir-lhe o hálito gelado:

"Alma, continua a colher flores,
Já que tens o dom da arte e da poesia,
Mas não terás sossêgo nos amores."

"Com convivas, trinta e cinco, e uma vela,
Espera-me à mesa, eu volto um dia
Pra levar-te, prenda minha, nesta sela".


02/01/2007

Fiquei estarrecida quando encontrei este soneto. E tive que chorar novamente. Ele evidencia como Alma sabia de sua morte próxima, no dia 20/01/2007, e das circuntâncias de seu velório sobre a mesa de nossa sala, com a vela acesa e os convivas, os trinta e cinco anos fecundos de sua vida. Aproveito para republicar aqui o soneto "Visão", do dia 03/01/2007, que complementa esta premonição sobre o o inaudito e espantoso velório nu da Alma. (Lucia Welt)


Visão (de Alma Welt)
(77)

Ser a musa eternizada do meu pampa!
Cantar, celebrar e endoidecer
De tanto amar até saltar a tampa
Do coração e da mente, e então morrer!

Nua, estranhamente, sobre a mesa
Estendida me vejo, uma manhã:
Um desfile silencioso me corteja
De peões, peonas e algum fã.

Mas olho o meu corpo de alabastro,
Absurdo e belo ali, e não à toa
Eu noto algo nele que destoa:

Sobre a alvura do pescoço bailarino
Uma faixa vermelha como um rastro
Da corda que selou o meu destino...

03/01/2007
Postado por Lúcia Welt às 12:22 PM 0 comentários
01/03/2008
De pôquer, amor e cinismo (de Alma Welt)

248

Bom jogador mas cínico fantástico,
Meu irmão ganhou uma bolada,
Chegou jogando a pilha com elástico,
Dizendo: "É todo teu, não quero nada!"

"Só retirei um pouco para o jogo
Pois o pôquer bom é o seguinte,
A nova mão, o blefe e o logro,
Pois jogar é um roubo com requinte."

"Todavia se fizeres bom proveito
E levares este barco para adiante
Mesmo com a Poesia tua amante,"

"Eu me sentirei mais liberado
Pra ganhar ou perder com teu respeito
Pois a Alma sorri e sou amado..."


07/01/2007
Postado por Lúcia Welt às 9:21 PM 0 comentários
À deriva (de Alma Welt)

247

Altas horas, silêncios rumorosos
De grilos, de sapos e os estalos
Do casarão com seus nichos tenebrosos
Por onde o Tempo escorre pelos ralos.

A casa arfa, suspira, sofre e geme
Com o peso de sua circunstância.
Como um barco náufrago, sem leme,
Que já não disfarça a sua ânsia,

A ausência de piloto é um mistério...
A poetisa, o jogador e a cosinheira
E um contra-mestre com nome de gaudério

Somos pois os tripulantes que vagamos
Dentro de uma nave sem esteira,
E não sabemos mais pra onde vamos.

15/01/2007
Postado por Lúcia Welt às 9:07 PM 0 comentários
Vozes no casarão (de Alma Welt)

246

Esta noite ouvi tristes lamentos
Pelos corredores desta casa.
Estava eu imersa em sentimentos
E pensei: "É minha alma que extravasa."

"Sou eu, sempre eu mesma, vem de mim!
Meu ser carrega a dor do mundo
Junto com o seu amor sem fim
Vindo do meu cerne mais ao fundo."

Mas o som parecia vir do ar,
E outro que não a minha voz
Não me deixava me enganar:

Era o cantochão da Açoriana
Confrontando o lied* dos avós,
E a confundir esta Alma pampiana...

09/11/2006


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Nota da editora

* lied- canção em alemão( plural: lieder) gênero de canções alemãs de câmara (eruditas) para serem cantadas individualmente por solistas de vozes líricas (soprano ou contralto, tenor, barítono ou baixo). São famosos, por exemplo, os lieder de Shubert, como A Truta, A Fiandeira, O rei dos álamos, etc. Alma quis dizer que as vozes de nossos avós alemães, Joachin e Frida, soavam como lied em oposição ao lamento católico, cantochão (canto gregoriano) de nossa mãe açoriana. (Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 11:53 AM 0 comentários
28/02/2008
Fogos-fátuos (de Alma Welt)

245

Esta noite irei ao cemitério
Para ver os fogos-fátuos lampejando;
Os peões temem muito o seu mistério
E acreditam que são almas vagando

Fugidas dos túmulos, seus leitos
Que anseiam deixar definitivo
Para estar conosco por motivo
De recuperar lares desfeitos.

Pelo sim, pelo não, estou com medo
Mas a curiosidade é maior
E nunca gostei de dormir cedo.

Mas, bah! encontrar a Açoriana*,
Sua chama sofrida, sem calor,
Me faz sentir-me um tanto leviana...


(sem data)


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Nota de editora

*Açoriana- Para quem está entrando no blog da Alma pela primeira vez, devo explicar que "Açoriana" era como Alma chamava a nossa mãe, Ana Morgado, catarinense neta de açorianos. Nossa Mutti (mamãe) faleceu quando Alma tinha dezesseis anos. Sendo muito diferente da Alma, ao contrário do Vati (papai), houve sempre muita dificuldade de relacionamento entre a duas.(Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 2:15 AM 0 comentários
O punhal nas águas (de Alma Welt)

244

Com meu Rôdo como sempre mergulhei
No poço da cascata esta tarde
E nas águas transparentes encontrei
Um punhal de prata de "compadre",

E o mano diz ser lance muito antigo
Que fazia um "gaucho de honor"
Que tivesse sido salvo por amigo
Cuja arma tivera mais valor.

E lembrei-me então da narrativa
De um velho boiadeiro meu vizinho
De como o pai deixara a vida ativa

Por ter ficado eterno devedor
De um que de seu filho era padrinho,
E salvara de si mesmo em dor de amor.

(sem data)
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Nota da editora

Este soneto Pampiano me pareceu de sentido não muito claro. Alma por sua paixão pelo Pampa, conhecia bem os costumes gaúchos, mas por vezes narra coisas obscuras, costumes e tradições que não encontrei meios de conferir. É verdade, porém que não tenho a entrada e o trânsito que ela tinha nos ambientes e na intimidade dos peões. Entretanto encontrei dentro de sua arca um punhal de prata antigo, magnífico, todo lavrado, que pode ser esse do soneto, encontrado no fundo do laguinho da cascata. (Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 12:47 AM 0 comentários
27/02/2008
Vôo sobre o reino (de Alma Welt)

243

Pelas campinas mágicas do Pampa
Desta Alma em vôo permanente
Sobre este rincão da minha mente
Que é como um mapa ou fina estampa

Do mundo que a mim parece vário,
Eu percorro meus domínios qual rainha
Mas não como aquela num cenário
Montado pela corte tão mesquinha*.

Eu sei o que há além de cada rampa
De coxilha, por trás de cada olhar
De peão que navega o mar de guampa

E dos olhos sombreados no vinhedo
Que sob o lenço no chapéu pra não voar
Sonham lances improváveis de amor ledo.


09/11/2006

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Nota da editora

*..."montado pela corte tão mesquinha"- Alma se refere ao episódio "histórico" (talvez lendário) da Imperatriz Catarina II da Rússia (1729-1796) que manifestando desejo de conhecer o seu Império, seu ministro e cortezãos montaram, sem que ela percebesse, cenários de tapumes de belas aldeias ao longo da estrada que ela percorreu sem sair da sua carruagem, com camponeses (contratados ou sob ordens) sorridentes e bem vestidos em seus coloridos trajes folclóricos, atirando flores e acenando para ela entusiasticamente. Não é preciso dizer que Catarina voltou eufórica para o seu palácio, certa de que seu reino era feliz e ia às mil maravilhas. (Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 10:59 AM 0 comentários
Retorno ao bosque (de Alma Welt)

242

Atravessando o bosque tão amado
Me embeveço com a sua maravilha:
Musgos, líquens, o solo alcatifado
Que esconde a vida que fervilha.

Ali os cogumelos... e esses gomos
Ou orelhas recobrindo velhos troncos
Onde se escondem eles, bons gnomos,
Quando fogem dos trolls, aqueles broncos.

E de repente o pássaro ignoto
Que só canta quando piso nessa relva
Alerta-me os perigos que não noto

Pois o lobo pela Mutti encomendado
Quando eu era guria nessa "selva",
Deve ainda rondar esfomeado...


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Nota da editora

Nossa mãe, a Mutti, ou a "Açoriana" como Alma poeticamente a chamava, tentou incutir medo na Alma quando guria, a respeito do nosso bosque, que ela talvez considerasse mesmo perigoso. Mas o espírito aventureiro da Alma era mais forte, assim como o seu amor e fascínio pela Natureza, que superavam até mesmo um vago receio que restou como resíduo do mito desse "lobo", que persistiu, apezar de tudo, no espirito da corajosa guria como um ruído de fundo ou um arquétipo do Mal difuso no mundo... (Lucia Welt)

Aproveito para republicar aqui o soneto 196 para que o leitor compare ou se lembre da recorrência desse "lobo" mítico no bosque da Alma:


De lobos e guris (de Alma Welt)

(196)

Minha mãe dizia haver um lobo
No bosque aqui perto e emboscado
E que eu deveria ter cuidado
E nem sequer ir ali com o meu Rôdo,

Pois meu irmão, guri bem destemido,
Não seria páreo pro vilão
E que depois de assado e comido
Eu seria a sobremesa alí à mão.

Mas a curiosidade era mais forte
E eu entrava com ele ou sozinha
Embora jogássemos com a sorte

Pois a verdade era que eu creía
Haver o lobo que comia criancinha,
E até hoje ainda creio: o lobo havia.

13/01/2007
Postado por Lúcia Welt às 12:18 AM 0 comentários
25/02/2008
Episódio matinal (de Alma Welt)

241

Manhãs gloriosas desta estância!
Com a saia arrepanhada, entre coxilhas
Persigo eu, a rir, minhas novilhas,
Revivendo um prazer da minha infância.

Mas, bah! logo me vejo observada
Por um "gáltcho" sério e sisudo
Dos que não riem senão de madrugada
Quando em torno da chaleira podem tudo.

Então acerto o passo disfarçando
Como cabe à prenda ou filha de patrão
Deixando a barra do vestido ir ao chão

E faço um cumprimento de cabeça
Digno e sincero, esperando
Que a ordem universal restabeleça.

08/04/2004

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Nota da editora

Este encantador soneto pampiano é, ao meu ver, um dos melhores testemunhos da capacidade da Alma de fazer poesia e crônica ao mesmo tempo, no espaço exíguo de 14 versos, captando sentidos e estórias sutis de mínimos acontecimentos, aparentemente triviais, que à maioria das pessoas passariam despercebidos. (Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 4:43 PM 0 comentários
A encrenqueira (de Alma Welt)

240

Esta noite farei preces no pomar
Aos deuses e também a outros entes,
Ataviei-me em panos transparentes
E por isso terei que me esgueirar.

Se preciso sairei pela janela
Descendo pela minha amoreira
Pois o medo da Matilde ainda me pela,
Que tantas vezes se planta na soleira

E tenho que evitar ser apanhada
Pois teme que me pegue algum vilão,
(que pra ela estarei mais que pelada)

E vigia sua "niña" encrenqueira
Por horas sorvendo o chimarrão
Enquanto orvalho cai sobre a roseira...




15/10/2006


Nota da editora

Ah! minha irmãzinha... E no entanto, Matilde é que estava certa, pois foi o que (não no pomar, mas na cascata) acabou acontecendo, e ainda a tua morte... Se tivesses ouvido a tua babá não te arriscarias tanto, e estarias ainda conosco, e não te estaríamos chorando. (Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 8:04 AM 0 comentários
Chuva e sol, ou La niña (de Alma Welt)


Chuva e sol no pampa de Alma Welt - óleo s/tela de Guilherme de Faria

239

Rôdo, mano, vai na frente espionar
Pra ver se posso entrar pela cosinha!
Matilde já não quer acobertar
As loucas escapadas de "la niña".

Já que estou molhada e seminua,
Minha Bá achará que estou sem roupa
E a Mutti se me pega perpetua
O mito de que Alma é mesmo louca.

Com a chegada do nosso haragano,
Bah! rolar na chuva nestes prados
Com o sol em contraponto pampiano

E ter estado nos teus braços, meu irmão,
Gritando de alegria, ensopados,
Vale na certa os tapas e o sermão!

04/11/2005


Nota da editora

Ao encontrar este soneto mais uma vez me comovi, pois ele recorda um fato que testemunhei. Lembro-me bem desse dia, quando Alma ainda adolescente (15 anos) chegou ensopada, com o vestido colado no corpo (que realmente a deixava nua), linda e afogueada, entrou em casa se esgueirando e ao mesmo tempo sorridente, travêssa. Nossa Mutti era viva quando do fato portanto Alma escreveu este soneto muitos anos depois do ocorrido. O vitalismo, alegria e integração de minha irmã com a Natureza eram comoventes, e ao recordá-lo não posso acreditar que ela se foi... (Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 12:33 AM 0 comentários
23/02/2008
A arca (de Alma Welt)

238

Qualquer poema meu ou texto escrito
Atiro numa arca muito antiga
Que contém de mim o feito e o dito,
Também algum mal-feito, há quem o diga:

Minha Mutti já não mais quer saber
O que eu registro do que vivo
Com receio de chocar-se ao perceber
O quão revelador é aquele arquivo.

E então ordenou ao meu Galdério
Que queimasse aquela urna arcana
Ou enterrasse além no cemitério

Esquecida de que o nosso charreteiro,
Bem mais fiel a mim que à Açoriana,
Não trairia o seu pampa verdadeiro...


25/08/2006

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Nota da editora

Encontrei, surpresa, este soneto inédito que se refere à própria arca dos escritos da Alma, de que eu sempre conheci a existência secreta e da qual fui aliada desde guria, ajudando-a mesmo, junto com o Rodo a escondê-la da Mutti. Entretanto Alma a mudou de esconderijo por receio de nossa mãe, que suspeitou de que o Galdério não a havia queimado (pois Alma não fingiu suficientemente um grande sofrimento e revolta) e a procurava. E eu só vim a redescobrí-la tantos anos depois da morte da Mutti e alguns meses depois da morte da Alma.
Quanto ao soneto, fui logo mostrá-lo ao Galdério, e o "galtcho" ou "Galdo", como a Alma o chamava, com o papel na mão, vi a folha vibrar, tremer. Creio ter visto um brilho no olho do gauchão fiel, que se manteve calado, nada comentou...
(Lucia Welt)
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RIP* (de Alma Welt

237

Vem por aqui, Galdério, logo à frente
Vou te mostrar o que encontrei:
Uma cruz estranha que nem sei
Se é cristã ou coisa diferente.

Vê, gravada nesta laje, aqui, assim,
Algo muito gasto está escrito.
Será o túmulo violado e proscrito
Do antigo estancieiro Valentim?

RIP está gravado e se percebe,
O resto é posterior, mal redigido,
E suponho por alguém que ainda bebe

O vinagre do que, mal digerido,
Não sei, Galdério, mas o sinto,
Deixou seu travo em nosso vinho tinto.


(sem data)
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Nota da editora

* RIP- Iniciais do mote latino "Requiescat in Pace" (Repousa em paz), que era inscrito antigamente em alguns túmulos.

A recorrência nos Sonetos Pampianos da temática referente ao estancieiro Valentim Ferro, que vendeu a estância (depois chamada Sta Gertrudes) para o nosso avô Joachim Welt e em seguida se suicidou enforcando-se numa trave do sótão do casarão, faz-nos perceber como esses fatos assombravam o espírito sensível (e até sugestionável) de minha irmã, que considerava, percebe-se, que havia uma culpa persistente pesando sobre a nossa família, que plantou o seu vinhedo sobre esse túmulo amargo. (Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 12:01 PM 0 comentários
Meus amigos, caros (de Alma Welt)

236

Meus amigos, caros, que saudade
Eu tenho dos tempos de convívio,
Que o tempo agora é de oblívio
E a solidão é a minha herdade!

Reduzida à estância e a família
O mais são os peões e os animais,
Os poemas talvez sonhos irreais
E uma tristeza vaga, que humilha

De viver uma tarefa insolúvel
De um pântano drenar os tais miasmas
Ou de como conquistar um ser volúvel

E não ter sido afinal bem sucedida
Pois me vejo cercada de fantasmas
E nem mesmo sei mais o que é a vida...


17/01/2007
Postado por Lúcia Welt às 12:11 AM 0 comentários
22/02/2008

Folder criado pelo desenhista Renato Adriano para a apresentação da banda Risses (que inclui uma canção de Alma Welt e João Roquer), que ocorreu no último sábado às 22:00 horas no Vila Teodoro, na rua Teodoro Sampaio 1229.
Postado por Lúcia Welt às 7:21 PM 0 comentários
Vem, meu leitor (de Alma Welt)

235

Vem, meu leitor, voa comigo
Por sobre a minha estância encantada.
Há muito a mantenho iluminada
Pelos melhores versos que consigo.

Sei que podes vê-la em tua mente
Sendo, pois, meu hóspede querido,
Levar-te-ei pelo jardim florido
E depois talvez a coisa esquente

Quando me encontrares no pomar,
Logo no vinhedo e no lagar,
Depois subindo ao sótão de noitinha

Pra veres onde flui minha poesia
Se achaste minha jornada comezinha:
Noites nuas perpassadas de magia...

07/06/2006
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21/02/2008
Sendas farroupilhas (de Alma Welt)

234

Caminho pelas sendas farroupilhas
Que ainda se vêem aqui no prado,
E serpenteiam servindo como trilhas
Para os peões de hoje e nosso gado.

E me vejo de repente acompanhada
De visões dos nossos companheiros
Montados, zurzidos por pampeiros
A procurar a sua última invernada

Logo sofrida, espectral, penada
Pois que nunca houve paz impune
Pros que vivem e morrem pela espada.

Então volto ao casarão atormentada
Como alguém que a guerra ainda pune
Com os ecos da última emboscada...


14/01/2007

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Nota da editora

Alma sempre foi visionária, desde criança, e me impressionava a intensidade e sofrimento de suas visões quando ainda guria, atormentada por horas por espectros, reais para ela, que a afugentavam às vezes de suas incursões pelas pradarias em torno do nosso casarão. Muitas noites, dentro de casa, também ela era assaltada por essas visões e se refugiava em minha cama, nos meus braços ou nos de Rodo, quando então era punida por nossa mãe, que não a compreendia. (Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 11:50 AM 0 comentários
18/02/2008
O laço (de Alma Welt)

(233)

Ultimamente ao chegar perto do poço,
O laguinho da cascata que assim chamo,
Eu sinto um aperto no pescoço
Que não posso explicar, do qual reclamo.

Aqui eu mergulhei desde criança
E o fiz sem roupas claramente
Pois nunca perdi a esperança
De viver como vejo em minha mente

Num mundo de pureza e liberdade
Onde o senso de pecado não existe
Uma vez que não existe nem maldade.

Por quê então a dor (eu me refiro
ao laço na garganta) que insiste
Em me embargar tirando-me o respiro?

15/01/2007


Nota da editora

Encontrei este impressionante soneto inédito na arca de minha irmã e que me emocionou sobremaneira pois me fez ver o quanto a Alma pressentia, misteriosamente, o seu fim, inclusive somatisando os sintomas de seu estrangulamento pela corda em seu pescoço, com que foi encontrada flutuando a um palmo da superfície do poço, ancorada a uma grande pedra. Ainda assim, como já contei, restam dúvidas quanto à natureza de sua morte. (Lucia Welt)
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15/02/2008
La belle-au-bois-dormant (de Alma Welt)

232

Galdério, meu gaudério castelhano
Por quê não selaste a minha Altéia?
Queres me levar na tua boléia
E pra isso sabotas o meu plano

De sair por aí em disparada
Por onde não vai a tua charrete
Que roda obediente pela estrada
E não pode seguir a tua pivete

Que gostarias rever-me como outrora
Com a cabeça no teu peito, antes da janta,
Me recolheres como fora bela Aurora

Pra adentrares o jardim, logo a varanda,
Comigo nos teus braços qual infanta
Posta em sossêgo, leve, muito branda...

12/01/2007
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O sangue da terra (de Alma Welt)


Joachin Welt, o Vinhateiro (avô da Alma, com seu relho ou rebenque)-gravura em metal(ponta seca e água-tinta) de Guilheme de Faria

231

Vati, ó Vati, leva a tua filha
Contigo em tua sela às pradarias.
Se vais levar sosinho uma novilha
Por quê razão a mim não levarias?

Queres que eu seja o fino espelho
De tua alma cantora e pianista,
Mas também carregas esse relho
Herdado do avô boche, o "arrivista"

Que na verdade, bom agricultor
Já lá nas suas terras dos Sudetos
Não merecia tal suspeita e rancor

Pelas uvas que plantamos desde então,
Pois que agora nos vêem, filhos e netos,
Pisando o novo sangue deste chão.


03/04/1999


Nota da editora

Este soneto recém-encontrado na arca da Alma, e que pela data foi escrito quando o nosso Vati ainda era vivo, relembra a discriminação sofrida por nosso avô, o "boche",
que, visto como um intruso ou "arrivista" andava sempre com um rabo-de-tatu na mão e veio introduzir um vinhedo estranho, na verdade pioneiro, numa terra tradicionalmente de gado, charque, mate... e lutas gloriosas. (Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 3:09 AM 0 comentários
13/02/2008
La niña (de Alma Welt)

230

Quando me aproximo da estância
Pelo meu trenzinho fumegante
É que paro de pensar por um instante
E me sinto retornar à minha infância.

Ah! que bela sensação de aconchego
Ainda em pleno campo, mais humilde,
Estar de volta a um mundo de sossego
Como estava nos braços da Matilde

Minha doce babá, velhota agora,
Séria, em diligências na cosinha,
Mas cuja ternura ainda vigora

E que me espera ali no seu domínio
Como se nada estivesse em seu declínio,
Pra abraçar "sin embargo" a sua "niña"!

08/09/2006
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12/02/2008
Amar, amores (de Alma Welt)

229

Quando meu amor comigo andava
Nas manhãs de primavera, ao meu lado,
Eu sentia que o Tempo então parava
E o Infinito se instalava no meu prado.

Esse amor que os destinos alterava,
Ora era Rodo, meu irmão, depois Aline,
Laís, depois Mayra, a sublime,
E Andrea que digitalmente amava...

E por razões ocultas, pouco nexas
(ou isso era desmando muito louco
de um piá com as suas doidas flexas),

Eu amava o amor que me mirava
E cujo foco podia durar pouco
Pois o belo sua face transmutava.


06/01/2007
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10/02/2008
Meu Pampa verdadeiro (de Alma Welt)

(228)

Meus poemas vivem das memórias,
Uma saga paralela em minha vida.
E não sei qual é mais parecida
A que vivo em carne ou nas estórias.

Mas, uma saga? Alguém perguntará...
E eu respondo: sim, a da verdade.
Não acredito ser possível acuidade
Pra distinguir o ser de fora, que não há.

Não há como saber o que é real
Quando se tem um forte parecer,
Uma alma repleta de ideal.

Mas continuo a crer mais verdadeiro
O ambivalente Pampa do meu ser:
Imenso, feminino, cavaleiro...


19/12/2006
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Prece ao Minuano (de Alma Welt)

(227)

Ó Vento Minuano do meu Pampa,
Grande rio que desce a cordilheira
Do mundo castelhano como rampa,
Para fluir no prado em corredeira

E logo liso e frio sob as portas
Para gelar o meu peito desregrado
Que teme ter aberto suas comportas
E agora estar sendo castigado!

Rei Mino, me prosterno amedrontada
E oro ao deus dos ventos que em vigia
Abriu as tuas eclusas de enfiada

E deixou teu forte rio desatar
Do imenso coração da pradaria
Para com direito me humilhar...



(sem data)


Nota da editora

Acabo de encontrar mais este magnífico soneto perdido entre seus papéis e que não compreendo como a Alma não publicou na ocasião no site RL, onde estava colocando diariamente a série Pampiana, até a sua morte tão chocante e repentina no dia 20/01/2007.

*Este soneto me faz recordar a temerosa veneração da Alma pelo vento Minuano, que quando soprava a deixava fora de si, em pânico ou delirante, de tal maneira que Matilde e eu tínhamos que amarrá-la para não sair correndo na pradaria ou debatendo-se no chão de maneira impressionante e dolorosa. Alma era demasiado sensível aos elementos e parecia ter um estranha integração com a paisagem, para a alegria ou para dor. (Lucia Welt)
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Meu Mundo (de Alma Welt)

(226)

Quando quero viajar o mundo inteiro
Me dirijo ao escritório do meu Vati
Com seus três mil livros e o tinteiro
Com sua pluma de ema de cor mate.

Ah! A bomba e a cuia ali estão
Sobre a mesa como signos do pampa
De onde partirei para o Japão
Inspirada por aquela bela estampa

Da famosa onda do Hokusai
Com o monte Fuji bem no fundo
Incluída em testamento por meu pai

E doada só a mim, com intenção
(que nem mesmo precisava tal menção)
Pois co'a pena e os livros... é meu mundo.


(sem data)


*(recém-encontrado, certamente também dos Sonetos Pampianos da Alma).
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A Viúva-Negra (de Alma Welt)

(225)

Um peão aqui da estância foi picado
Por viúva negra, o pobrezinho!
Então fui visitá-lo (é meu vizinho)
E estava mal-ferido e acamado.

Mas depois de meia hora compreendi
Que ele estava era mesmo apaixonado
Pela viúva de um peão muito afamado
Que persiste morando por aqui.

Apesar de muito bela e cobiçada
Ela parece inacessível e já fatal
Pois o marido morreu de uma facada

De um outro, Antonio, o qual
Depois também tirou a própria vida,
Por conta da péssima acolhida.


Notas da editora

*Este soneto-crônica a rigor deve pertencer à série dos Pampianos da Alma, que já somam 230, mas como já estão publicados numa ordem e numerados, prefiro não mais tentar encaixar as novas descobertas para não afetar os respectivos comentários dos leitores.

Esta estória, verdadeira, da qual eu soube detalhes pela Matilde, mostra a mentalidade rígida de nossa mulheres, peonas aqui da vinha, que freqüentemente morrem para o mundo após a morte de seus maridos. O mito da viúva-negra, aqui, vai por conta do despeito dos peões pretendentes rejeitados. (Lucia Welt)
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03/02/2008
CANÇÕES DA LUA (de Alma Welt)

Lua de Yupanqui (de Alma Welt)


(Surpresa e encantada encontrei este lindo poema inédito da Alma em sua arca, no nosso sótão. Já me parece uma canção, pois canta desde já pedindo ser musicada. Conclamo aqui o querido João Roquer (da banda Risses) a fazê-lo. João, porás melodia nesta canção? Tu a cantarás? Te peço... (Lucia Welt)

(1)

Também a ti cantarei
pois cantar, lua, não manque
quem te pudera cantar
depois do "gáltcho" Yupanqui*
quem te soubera encontrar
em meio a névoas de sangue
de tanto tanto buscar
em caminhadas de mangue,
as tuas sendas no ar

Lua dos amantes cegos
e dos tais impenitentes
que não te podem mirar,
Dos incautos, dos valentes
que se dispõem a sonhar

Lua lua aqui me vês
perdida como uma rês
que a si se quis apartar

Leva-me em tua barca
não me deixe aqui restar
esquecida de tua arca
de par em par, no afã
de teu lento naufragar,

Que sou pequena, sou órfã,
também já não tenho lar...

(Alma Welt)

Nota de editora

*Yupanqui- Atahualpa Yupanqui, grande compositor argentino, célebre, da província de Tucumán, autor de inúmeras canções imortais como a celebrada Luna Tucumana, que se tornou praticamente folklórica, uma das canções pampianas mais amadas pelos argentinos. Alma adorava essa música e a cantava lindamente acompanhando-se ao violão. A voz de Alma era belíssima, indescritível, e sua pronúncia castelhana, perfeita. Ainda a ouço na memória, e choro ao me lembrar... (Lucia Welt)

Para ouvir a canção Luna Tucumana, em belíssima interpretação:

http://br.youtube.com/watch?v=WXdoZyciqNQ

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O acordo (de Alma Welt)

Encontrei, maravilhada, uma série característica de poemas da Alma dispersos no meio de sua vasta obra na arca de nosso sótão, que alinhavados formam o que passarei a chamar "Canções da Lua". O querido João Roquer, da banda Risses, já prometeu musicá-los.(Lucia Welt)


O acordo (de Alma Welt)

(2)
Por estes prados de mar
Me avistaste num clarão
Em meu louco navegar
Me olhavas do teu balcão

Não te cansas de chamar
Qual se ainda fosse tua
E não vagasse no ar
E não estivesse nua

Mas o quê sabes de mim
Na minha eterna aventura?
Vou atrás da minha lua
Nada podes com algo assim

Lembra do acordo, não jura,
Feito no nosso jardim...


08/11/2006

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Lua de "ménage" (de Alma Welt )


(3)

Pelos prados de coxilhas
me verás cantar à lua
qual fosse senda noturna
do meu jardim, pelas trilhas.

Que podes senão seguir-me
com teu fino violão
e tentares perseguir-me
na minha bela canção?

Seremos um sob a lua,
assim me poderás ter
se me provares saber
acompanhar, serei tua

Até deixarei tocar-me
sob seus claros lumes
para à lua fazer charme
e provocar-lhe ciúmes

........................

Seremos um sob a lua
assim me poderás ter
se me provares saber
acompanhar, serei tua...



(sem data)


Nota da editora:

O fato de de Alma ter repetido a penúltima quadra no final, como um refrão, confirma, a meu ver, a sua visão deste poema como uma canção para ser musicada mesmo. Musical como ela era, é uma lástima que ela não tenha tido tempo em sua vida para musicar seus próprios poemas e cantá-los. Mas onde estiver, creio que ficará satisfeita com as melodia que o jovem João Roquer, e a bela Lika, ambos da Banda Risses, estão colocando em seus poemas. João já prometeu musicar todas as "Canções da Lua" da Alma que lhe inspirarem melodias e harmonias.

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Canção da bela lunada (de Alma Welt)


(4)

Lua noturna amazona,
por quem me tomas minha lua?
Não sou chinoca de zona
por me veres assim nua.

Teimas em me desnudar
Ah! Como somos tão brancas!
Com o pálido nenúfar
a boiar-nos entre as ancas.

Se me deito como em parto
é porque sou tua amante.
Se permaneço em meu quarto
é por seres inconstante.

Lua, lua me acolha!
Não perguntes de onde veio
quem se entrega ao teu enleio.
Sou bela... não tive escolha.

Esta noite irei ao prado
e te abrirei o meu seio
para que seja encontrado
lunado, frio e alheio


Lua, lua me acolha!
Não perguntes de onde veio
quem se entrega ao teu enleio...


(sem data)
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Canção da noite de lua (de Alma Welt)


Mais uma "Canção de Lua" descoberta entre a imensa produção da Alma, ainda inédita, encontrada em sua arca... (Lucia Welt)

(5)

Pela campina anoitada
minha lua está a vagar
lançando apelos na estrada.

Te quero, lua, e irei
contigo esta noite deitar,
que já não tenho mais lei.

Me porei nua nos prados
pra me causares marés,
pra me lunar dos dois lados.

Branca como uma fada
me deitarei aos teus pés,
a ti serei consagrada.

E quando fores de dia
pro teu refúgio secreto,
me farei tua cotovia:

Voltarei cantando ao lar
contar ao irmão dileto
que longe fui namorar...

(sem data)

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Lua cigana (de Alma Welt)


(6)
Minha cigana vem vindo
no seu carroção da noite
buscar-me para um pernoite
que já me vejo fruindo.

Lua, lua cigana
começo a ouvir o teu canto
e ainda não sei o quanto
estás perto desta "hermana".

Voarei se me quiseres
nas asas do teu luar
por suas trilhas no ar
em campos de mal-me-queres.

E quando enfim começar
o fandango de rabecas
tuas ciganas sapecas
me verão também bailar.

(sem data)


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A alucinada ( das Canções da Lua, de Alma Welt)

(7)
Pelas margens do meu rio
irei nas noites de lua
entre o sonho e o delírio
por esta espécie de rua

que me leva a este nada
perfeito, noturno e claro
onde encontrarei a amada
e seu canto muito raro.

Lua, lua aí vem ela
envolta em tua aura
azulada que até gela
mas que tão logo restaura

a sua feição bonita
em risos de alucinada
que entre cantares grita
o seu amor, pela estrada

que me leva a esta amada
perfeita, noturna e clara...


(sem data)

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Teia lunar (de Alma Welt)

(8)

Pequena lua impassível
que de noite vens me olhar
com teu brilho impossível
de a ti mesma revelar

Que me dizes, o que quer
teu branco olho lunar?
Teu silêncio me requer
desfazer-me em meu tear?

Levanto-me branca e nua
no meu sonho recorrente
e vou andar pela rua
como uma pobre demente

Até retornar ao leito
vaga, sonada e lenta
trazendo uma flor no peito,
na boca um sabor de menta.

Sob os lençóis macios
me deito já desfrutada
como esses seres vadios
de tua louca noitada

E durmo com minhas mãos
que desfizeram a teia,
repousando entre os vãos
que o teu olhar incendeia.


(sem data)

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Vigílias pampeiras (de Alma Welt)


(9)
Quando cai a lua cheia
sobre alfombras de coxilhas
um canto de plena veia
percorre o Pampa por milhas

E vemos os fogos no chão
com as chaleiras que chiam
fervendo pro chimarrão
dos "gáltchos" que silenciam

para ouvir cantos de lua
ao som de foles gaudérios
com estórias de mistérios
de uma estranha prenda nua

que galopa em plena noite
com a ruiva cabeleira
como o rastro de um açoite
nessa vigília pampeira.

Já sabem usteds quem é
essa china impenitente
que chega a sorrir até
ouvindo o que diz a gente?

Voem cantos, chie o mate...
Olhar, comece a vigia!
Esta noite cante o vate
as façanhas da guria!

Que galopa em plena noite
com a ruiva cabeleira
como rastros de um açoite
na grande noite pampeira.

(sem data)


Nota da editora

Nos últimos tempos recrudeceu o hábito da Alma de sair tarde da noite cavalgando nua e em pelo a sua égua Miranda pelas pradarias até longe do casarão. Isso aumentou a sua lenda entre os peões aqui na nossa região.
Uma noite, Matilde, nossa cosinheira e sua ex-babá, que percebeu o que acontecia, conseguiu impedi-la amarrando-a na cama. Ela achava que Alma estava louca. Confesso que não a desamarrei e fiquei à sua cabeceira acalentando-a, até que cessou de se debater e adormeceu.


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Lua de seresta (de Alma Welt)


(10)

Seresteira irmã da Alma
que me fazes acordar
após um sono sem calma
que permitiu te escutar,

Lua, lua, só me resta
ir vagando ao teu encontro
para ouvir tua seresta
a que respondi de pronto.

Meu balcão é a varanda
sobre teu jardim lunado
recendendo à lavanda
do jasmineiro acordado

E logo assisto ao desfile
dos luzeiros encantados
dos pirilampos do Chile,
(que assim os quis rimados)

E então me ponho nua
pois não posso me esconder
do olhar-arco-de-pua
com que verrumas meu ser.

Depois deitada entre as flores
afasto meus brancos membros
para que vejas as cores
dos dias de teus setembros.

Mas, ai! comicha-me a gruta
um travesso vagalume
e fujo como uma truta
pro meu leito de costume.

Lua nova, aqui me deixes,
não me faças te buscar!
Teus cantos de rio e mar
alvoroçaram-me os peixes...


(sem data)
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Pelos Caminhos da Noite (de Alma Welt)

11

Pelos caminhos da noite
que já conheço tão bem
sem que tema nem me afoite
caminho como ninguém

O poema é meu guia
e a lua farol brilhante
Meu corpo é a cotovia
que por sua luz se adiante

Ah! minha lua faroleira
que giras sobre este mar
que só tem sua fronteira
se mil porteiras fechar

Navego por entre coxilhas
como as ondas desse mar
Ah! encantadas ilhas
do meu doido navegar!

Lua, lua me carregue
já começo a me alçar
Estou nua estou entregue
ao teu fio de enredar

és a aranha da noite
em tua teia estelar...




Leitos da lua (de Alma Welt)

(12)

Pelos pagos planos do meu pampa
Ia a lua vagando em vaga via,
Feitora das marés em sua rampa

Mas, ai! aí eu ia ao seu apelo,
Levitada de meu leito de guria
Para banhar-me à luz do seu desvelo

E, pura, pelos prados do prazer
Eu pulava por planura e pouco chão,
Já prestes a pelar pra a lua ver...

E foi assim que minha mãe, a Açoriana,
Depois de procurar-me, não em vão,
Notou-me nua em nívea névoa, ó lua hermana!


(sem data)


Notas da editora

Por curiosidade revelarei aqui dois tercetos que finalizariam o poema, mas que a Alma riscou, excluiu, pela sua extraordinária sabedoria técnica que sabia sempre quando um poema estava terminado, evitando o demasiado circunstancial:

"E me pegando pelo punho me puxou
Arrastando-me de volta ao casarão,
Brutalmente no banco me botou,

Onde, tímida, tremendo, torturada,
Fui resgatada por guri, sim, o irmão!
Que lívida levou-me e... fui amada."


Com esse curioso e encantador poema, cheio de aliterações, dou por terminada a minha pesquisa e alinhavo do que convencionei chamar Canções da Lua, da Alma. Naturalmente é possível que outros poemas da grande poetisa se encaixem nessa denominação ou gênero, e que eu ainda os descubra na incrível montanha de textos de minha irmã, em que estou embrenhada. Mas por ora, com estes doze podemos, eu e o querido João Roquer (da Banda Risses) pensar em musicar e criar um CD, para o qual já encomendei a capa e o encarte ao mestre Guilherme de Faria, que os amou. (Lucia Welt)

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27/01/2008
SHOW TERRA DESCOMHECIDA, DA BANDA RISSES


Ensaio da Banda Risses


João Roquer e Lika, vocalistas e compositores da banda Risses em magnífica performance no Clube da Cana, no dia 22/01/2008 (foto batida pela cantora e poeta Dhara)


A fantástica cantora Lika, da Banda Risses, na sua performance no Clube da Cana, no dia 22/01/2008 (foto de Dhara)

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Terra Desconhecida - Repertório


*Quisera um jardim (Alma Welt)
(...o que temos é matéria difícil...música e palavra...)

*Macô
(...uma casa... tive um segundo para observá-la...)

*Bicho da cidade

*Pega-pega, pipa, mãe da mula
(... poesia...circo...palhaço...mundo(quadrado)...)

*O mundo ainda é mundo

*Como brigar com deus

*Eu não vim aqui só pra dizer...

*Utilidade para amor

*Se olhar!(Ensaio Sobre a Cegueira, J. Saramago)

*O palhaço

*O mundo é quadrado Jaun
(...é o mundo é Quadrado... ginga negrinha..)

*Há um caso

*Migração

*Macaco
(...viver a música não é só ouvir, mas...)
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20/01/2008

Folder realizado pelo desenhista Renato Adriano (renatoadrianorosa@hotmail.com) de nova apresentação da BANDA RISSES, ocorrida no dia 22 de Janeiro (terça feira)às 21 horas, no Clube da Cana, na rua Barão de Tatuí 274, Santa Cecília, São Paulo.
Nota:
Nesse dia a banda Risses incluiu no seu show TERRA DESCONHECIDA mais um poema da Alma Welt "Quando volto ao casarão"(n° 16 dos Sonetos Pampianos) musicado e cantado lindamente por João Roquer, o vocalista e compositor, em maravilhoso dueto com Lika Rosa, também vocalista, compositora e baixista da banda. O público delirou.
Eu soube por e. mail pelo Guilherme de Faria, que mora em São Paulo, que o show foi lindíssimo, e que Lika, a linda vocalista da banda, brilhou mais uma vez com seu enorme carisma e presença de palco, além de uma voz privilegiada que tira sons incríveis de floresta. A guria de 23 anos, ao mesmo tempo parece, segundo ele, uma ninfeta adorável. Irei a São Paulo para vê-los, abraçá-los fruir a sua música e agradecer a eles por terem descoberto a poesia de minha irmã e a estarem tratando com tanto talento, amor e carinho. Eu recebi deles pelo correio um CD piloto das canções da Alma, musicadas e cantadas pelo João Roquer, e encantada, pude constatar isso. (Lucia Welt)
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10/01/2008
Quando volto ao casarão (de Alma Welt)


Folder realizado pelo desenhista Renato Adriano, da reapresentação da Banda Risses, que ocorreu dia 12/01 no Clube Caiubi, atualmente funcionando no Vila Teodoro, na rua Teodoro Sampaio 1229, Pinheiros, São Paulo.
________________________________________

Este soneto, n°16 da série Sonetos Pampianos, de Alma Welt, que se encontra justamente neste blog, foi um dos poemas da Alma escolhidos pelo músico João Roquer, compositor e vocalista da Banda Risses, que o musicou lindamente e o gravou num piloto com mais duas canções de sua parceria póstuma com a Alma. Estou tratando com esse jovem músico talentoso a gravação de todo um CD de poemas da Alma musicados por ele, alguns musicados pela linda e jovem vocalista Lika Rosa, também com a participação da banda deles (Risses). (Lucia Welt)

Quando volto ao casarão


Quando volto ao casarão após a lida
É que passo a ter do mundo um panorama,
A olhar a vida aqui da minha cama
E sentir a minha alma agradecida.

A vista do jardim... além, o pampa,
Eis a minha verdade, ah! o pomar,
O bosque, a cascata, ali a rampa
Que leva até o vinhedo e o lagar!

O ser humano, eu vejo, se debate
Perplexo, na vida e no mundo
Procurando a superfície e não o fundo,

E percebo que o homem só suporta
O rumor e agitação, sem que se farte,
Pelas paredes, quatro, além da porta...

5/12/2006
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10/11/2007
SONETOS PAMPIANOS DA ALMA (de Alma Welt)

(Esta foi a última série de sonetos escrita por minha irmã, a grande poetisa pampiana Alma Welt, que faleceu aos trinta cinco anos, no dia 20/01//2007, aqui na nossa Estância Sta Gertrudes, no Pampa gaúcho. Deste glorioso ciclo de sonetos (para serem lidos em seqüência pois formam uma saga) foram publicados 150 no site Recanto das Letras (sendo que o último de sua vida se entitula A Carruagem e foi escrito na véspera do dia de sua morte) foram encontrados por mim até agora um total de 221, que publico aqui neste blog que abri para esta porção de sua obra( vide os outros blogs da Alma relacionados abaixo do meu "Perfil completo")
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20/10/2007
Crepúsculo no Pampa


Crepúsculo no Pampa de Alma Welt- óleo s/ tela de 2007, de 30x60cm, de Guilherme de Faria.
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11/10/2007
O Enígma de Alma Welt (pintura de Guilherme de Faria)


"O Enígma de Alma Welt" - óleo s/ tela de 50x60cm, de 2007, de Guilherme de Faria, coleção particular, São Tomé da Letras, Minas Gerais.
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03/10/2007
A Carruagem (de Alma Welt)

(Este é o último soneto da Alma, escrito na véspera de sua morte.)


Um piano toca no salão!
Ah! e não fui eu que coloquei
Um CD ou um velho long play,
Talvez seja o Vati, e então...

Ele voltou! Sim, ele me quer!
Vou ao seu encontro e sou mulher!
Sim, ele vai ver agora sou
Pelo menos a guria que sonhou.

Olha, Vati, há muito não me vias,
Mas de verso em verso muito errei
Pelo mundo, a viajante que querias...

E agora, com toda esta bagagem,
Leva-me contigo que eu irei
Quietinha, assim, na carruagem!

19/01/2007

Nota da editora:

Este soneto, o último da vida e da obra da Alma, publicado por ela no Recanto das Letras, tocou muitas pessoas que vinham acompanhando a série pampiana, publicados um ou mais por dia, em tempo real. Os leitores talvez sentiram que se tratava de uma despedida, mas não conscientizaram, pois as leituras registradas desse soneto só dispararam quando coloquei na página de minha irmã (por encontrá-la com a senha salva no seu computador) o anúncio de sua morte, com detalhes, o que indignou a muitos, e peço desculpas. A partir do momento da publicação do anúncio fúnebre, as leituras deste soneto foram rapidamente para mais de 300 registradas nos cinco dias seguintes,enquanto o total das leituras dos textos da Alma subiram mais 2.000 atingindo a marca de 14.000 e tantas, o que mostra a curiosidade válida, ou mórbida, não julgo, que as últimas palavras de um(a) grande poeta causam nos seus pares ou mesmo no público em geral.

PS (Como continuo encontrando na arca da poetisa sonetos que por seu espírito e temática se encaixam na série Pampiana, não numerarei por ora este "A Carruagem" e o republicarei no blog ao final, no fechamento da série, quando então saberemos quantos são os SONETOS PAMPIANOS DA ALMA). (Lucia Welt)

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Estrelas que mais brilham (de Alma Welt)

224

Me lembro do meu Vati me contar
Que as estrelas viviam e morriam
Depois de envelhecer e definhar
Mas que no final, pasme! explodiam!

Para de novo tudo tudo começar
Mas em "super-nova", em brilho incrível.
E eu então comecei a matutar
Se não ocorre o mesmo em nosso nível

Pois como estrelas que um dia pereceram
E já não estarão na Branca Via
No exato lugar onde nasceram

Tenho certeza que eu por certo voltaria
Mesmo que outro fosse o meu pomar,
Querendo (que vergonha!) mais brilhar...


20/12/2006
Postado por Lúcia Welt às 3:36 PM 1 comentários
25/09/2007
De pôquer e carência (de Alma Welt)

(223)

Caminhar no casarão a passos lentos
Tornou-se hábito embora eu seja jovem,
E posso até ouvir meus pensamentos
E sonetos, que nonatos, me comovem.

Subo de repente ao nosso sótão
Onde já nasceu mais de um poema,
Ali deitando-me no catre do irmão,
E em que tantas vêzes fui meu tema.

E então, recordações sensoriais
Me fazem chorar e adormecer
Agarrada aos travesseiros e meus ais

Para sonhar que estou no abraço forte
Do guri que me deixa sem saber
Que seu pôquer há de ser a minha morte...

17/01/2007
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Estória do umbu-rei (de Alma Welt)

(222)

Por amor a esta paisagem grandiosa
Mais de uma vez empunhei a carabina,
Mas foi um erro o que me fez ficar famosa
E salvar o umbu desta campina.

Foi quando um vizinho me peitou
Dizendo que estava em sua terra
O umbu onde Martinho se enforcou,
Que a árvore era sinistra e que aberra.

Então, melodramática, me amarrei
Ao tronco, disposta a ali morrer,
Com o risco de outra coisa acontecer

Pois fez com que o "gáltcho" gargalhasse
E rasgando meu vestido me mirasse
Dizendo: "Esse umbu agora é rei..."

29/12/2006

Nota da editora

Este episódio, absolutamente verdadeiro, foi bastante mitificado aqui na região e fez a árvore mudar a sua fama. Percebi que a Alma, sob o aparente constrangimento por uma vitória vergonhosa, regosijou-se com o resultado e no fundo admirou a presença de espírito e rude galanteria implícita no gesto do estancieiro vizinho, o "gáltcho" que a desnudou deixando-a amarrada por uns minutos, depois soltando-a e partindo no seu cavalo depois de tocar o seu chapéu com dois dedos. Me recordo ter percebido um período de meditação, suspiros profundos e um ar mais sonhador que de costume em minha irmã, por um tempo depois deste episódio. (Lucia Welt)
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Penélope (de Alma Welt)


Penélope e os pretendentes- Pintura de 1912 de John William Watherhouse (prérafaelita inglês)

(221)

Para enfrentar a morte escrevo,
Que é o único combate com o ogro
Que posso travar com algum enlevo
E que não redundará em vil malogro.

Pois sabemos que a letra permanece
Como uma fantástica lanterna
Que ilumina a trama que se tece
No silencioso tear da noite eterna

Produzindo uma teia inacabada
Como aquela da viúva inconformada
Que sabia dar ao tempo a sua medida,

E no final, no pouco que restara
Do painel da batalha desmedida
A sua própria saga ela plasmara.

29/12/2006
Postado por Lúcia Welt às 3:27 PM 2 comentários
Elêusis (de Alma Welt)

(220)

Estrelas do meu Pampa, peregrinas
Que eu via do jardim anoitecido
Onde colhera as flores pequeninas
Por entre as quais singrara meu vestido

De guria de olhar indefinível
E branca como um vaso de alabastro
Que meu pai votara ao grande astro
No teatro de uma ópera invisível

Encenada naquele nosso Elêusis
Que fizéramos desta bela estância
Onde o Vati me consagrou aos deuses...

Estrelas, sou poeta mesmo agora
Fiel ao meu sonho da infância
Pois que sua magia ainda vigora!

10/12/2007
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23/09/2007
O nó e o muro (de Alma Welt)

(219)

Este casarão que chora e geme
Nas noites desta estância tão sofrida
É agora o companheiro da minha vida
Como um barco à deriva já sem leme.

E não parece dirigir-se ao futuro
Mas arrastado em voragem de retorno
Ao porto de partida junto ao muro
Que separa o jardim do prado em torno,

Ali onde o nó foi enterrado
Com que enforcou-se o Valentim
Que era o vero estancieiro despojado,

Que perdeu pro meu avô a sua estância
Em que esta branca Alma vem porfim
Viver a sua busca e sua ânsia...


15/01/2007

Nota da editora

Este soneto, encontrado recentemente, confirma a recorrência na poesia da Alma do tema do nó de forca e do suicídio. Eu me pergunto se essa obsessão foi a responsável por sua morte trágica, ou se tais poemas representam a angústia de uma premonição, pois foi com uma corda em seu pescoço que ela foi encontrada no lago da nossa cascata, afogada em circunstâncias ainda não bem esclarecidas. De qualquer forma tais poemas me causam uma sensação profundamente lúgubre e dolorosa. (Lucia Welt)
Postado por Lúcia Welt às 9:11 PM 1 comentários
A Vivandeira (de Alma Welt)

(218)

Pelas trilhas centenárias do meu prado
Por onde desfilam farroupilhas,
Suas prendas, chinas, piás e filhas
Que ainda hoje pisam no relvado

Como falange de espectros penados
Eu os vejo quando a lua é propícia
E a brisa envia-me a notícia
Do etéreo desfilar de rebelados.

Então, eu montada em minha égua
Corro pra alcançar o homem certo
Entre Bento, Canabarro e o bravo Netto*

Mas ao lado do Giuseppe e sua guarda,
Vivandeira volto lá pra retaguarda,
Ao ver a bela Anita em sua trégua...*

14/01/2007

Nota da editora:


"Bento, Canabarro e o bravo Netto" - Bento Gonçalves e os outros dois mais importantes comandantes da Revolução Farroupilha.

"Vivandeira,..."- As vivandeiras eram mulheres que acompanhavam os soldados, a pé ou em carroções atrás das colunas, nas marchas para os combates ou nas retiradas, pra tratá-los, fazer-lhes comida e dormir com eles nos acampamentos. Individualmente eram chamadas chinas, chinocas ou mesmo "prendas'. A maioria era de prostitutas, desveladas e prestimosas, as verdadeiras heroínas da "retaguarda".

*sua trégua... - Alma sutilmente parece querer dizer que encontra Anita não fazendo guerra mas amor(com Garibaldi) e por discreção volta para o final da coluna, lá pra junto das vivandeiras.(Lúcia Welt)
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22/09/2007
SONETOS PAMPIANOS DA ALMA


"A invocação mágica de Alma Welt"- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, de
150X150cm, de 2007, coleção particular, São Paulo
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20/09/2007
Quando a macieira floreceu (de Alma Welt)


Assinatura e título do quadro "A Maciera de Alma Welt", de Cipriano Sousa


A Macieira da Alma Welt- óleo s/ tela de 80x60cm, de autoria do pintor primitivo baiano Cipriano Sousa, que se tornou grande admirador da Alma e a homenageou com este quadro.
(217)

Quando a macieira floreceu
Eu me prosternei perante a ARA
Invocando o poder que prometeu
E a Poesia que a ela consagrara.

E ao começar cair chuva fininha
Unindo assim a terra ao céu
Soube que o portal agora tinha,
Como segredo encoberto por um véu.

Ó chuva delicada dos meus deuses
Que me banhou de maneira deliciosa
Fazendo-me aceitar os meus adeuses!

Pois senti que eu podia terminar
Pondo o ponto final na minha prosa,
Que a Poesia começava a ressoar...

18/01/2007

Nota da editora:

* ARA- os iniciados na poesia da Alma sabem que ela assim chamava a sua macieira sagrada do pomar desde a infância. Trata-se das iniciais de Alma e Rôdo gravadas por ela a canivete num coração no tronco da árvore, produzindo a palavra "ar" (alento,vida, inspiração) acrescentada posteriormente do A de Aline, um forte amor de sua vida que ela trouxe para cá vinda de São Paulo e produzindo a palavra "ara" (altar).

Comoveu-me ao extremo este soneto, em que se percebe claramente uma despedida da Alma, e um fecho à sua obra. O presentimento de sua morte eminente já se manifestara em muitos sonetos de sua série Pampiana, mas este tem o tom de um encerramento, que me fez chorar lembrando a figura sagrada da grande poetisa minha irmã cuja vida se passara de maneira tão rara, em beleza, delicadeza e poesia. (Lúcia Welt)
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Minha hospedagem dos poetas mortos (de Alma Welt)

(216)

Aqui, no Pampa desta Alma
Os poetas mortos vêm me ver
E hospedam-se com prazer e calma
No casarão que ama os acolher.

E então reunidos no salão
Ou na biblioteca a conversar
Param um momento a confusão
Para em silêncio me ver atravessar

Sorrindo à direita e à esquerda,
Mas na verdade nua como Helena
Para assim poupar-lhes a desfeita

De recebê-los somente bem vestida
E não com a visão que vale a pena
Pois a ela dedicaram sua vida...

09/01/2007

Nota da editora:

Como todas as beldades Alma tinha consciência de sua extraordinária beleza, e isso fazia com com que se desnudasse com enorme facilidade e candura, eu diria mesmo generosidade. Não era de surpreender que ela imaginasse receber os seus queridos Poetas imortais oferecendo a todos, em conjunto, a visão de sua nudez deslumbrante. Pode-se dizer que o soneto implica até mesmo numa certa modéstia, pois sugere que a grande poetisa colocava a beleza física que Deus lhe deu, como o melhor que ela tinha a oferecer de si aos seus "hóspedes" famosos. Entretanto podemos também interpretar o soneto como uma alegoria da dádiva ou procura da beleza que é, em última instância, a meta de todo poeta ou artista, lembrando que Keats na sua "Ode a uma urna grega" a associa à Verdade:

"A Verdade é a Beleza, a Beleza a Verdade
Isso é tudo o que há para saber." (John Keats)
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19/09/2007
O segredo da Cascata (de Alma Welt)

(215)

Cavalgando uma manhã na pradaria
Encontrei uma carroça de ciganos
Que erravam há dias pelos planos
Atrás de uma cascata que havia

Para acamparem no entorno...
Porquanto me pareça um povo artista
Algo me dizia ser transtorno
E pensei em fornecer-lhes falsa pista,

Pois meu irmão fizera-me jurar
Que o nosso paraíso da infância
Não iríamos com outros partilhar.

Mas, então, com a rédea fiz um ésse
Em silêncio retornando à estância
A esperar que o segredo se impusesse.


14/12/2006

Nota da editora:

Alma e Rôdo costumavam banhar-se nus desde guris no poço da cascata que fica em local quase desconhecido de uma mata virgem próxima do casarão.Entretanto seria impossível mantê-la secreta como eles pareciam acreditar. A verdade, lamentavelmente, é que o hábito da Alma de banhar-se nua, ali, no esplendor de sua beleza, acabou lhe custando a vida. O peão (de uma estância vizinha) que a matou já a observara antes ou ouvira falar da beldade nua daquele poço (isto está sendo investigado). (Lucia Welt)
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Ajustes, ou Antes do casório (de Alma Welt)

(214)

O peão chegou diante do Vati*
E depôs o punhal na sua mesa:
"Patrão, guarde isso antes que mate
Um desafeto, me faz a gentileza."

"Para medir a cova do gaudério*
Que faltou com o respeito à minha prenda,
Já estive até no cemitério
Mas resolvi suspender a encomenda"

"Pois vou me casar e a eleita
Tem o senhor como padrinho,
Não posso "le" fazer essa desfeita."

"Não abrir mão de uma vingança
Na vida, creio que é mesquinho
Quando se vai ser pai de uma criança."

22/11/2006

nota da editora:

*Vati- pronuncia-se Fáti, "papai" em alemão.

*gaudério- indivíduo sem eira nem beira, fanfarrão. Não confundir com o Galdério (com l), nome próprio do nosso fiel charreteiro, seleiro, e factotum aqui da estância, irmão da Matilde, nossa querida cosinheira e
antiga babá. (Lúcia Welt)
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18/09/2007
Gnose (de Alma Welt)

(213)

Quando a Açoriana faleceu,
Ela que era a mãe, a minha Mutti,
Eu pensei, depois do tanto que doeu:
"Talvez a vida agora eu desfrute."

Pois mais doía ainda a incompreensão
E ardiam nas costas as varadas
De marmelo, pela minha incontenção
E mesmo minhas cândidas noitadas

No leito do irmão, nós dois colados,
Como um ser que fosse uno, uma gnose
Pela qual nos fariam execrados

Pois teimavam em apartar desta guria
O ser com quem vivia em simbiose
E a quem devo toda a minha poesia...

08/09/2006

Nota da editora:

O amor, a paixão mesmo que unia Alma e Rôdo desde guris
foi motivo de escândalo e chegou a repercutir na região.
Mas pela intensidade e grandeza desse amor, produziu-se uma visível trancendência que alcançou, após a morte da Mutti, uma tolerância, senão uma conivência por parte de todos, até dos peões da estância (por incrível que pareça) e que acabou se tornando parte do mito da Alma, mesmo entre nós seus familiares, com exceção da Matilde, nossa querida babá, cuja rabujice católica nunca foi levada muito a sério por nós, pois sabemos quanto nos ama. Entretanto preciso dizer que meu ex-marido Geraldo ousou desrespeitar a Alma por isso, e por sua cobiça por sua beleza, coisa que testemunhei e que Alma descreveu no seu romance inédito A Herança. Surprendi-me com este soneto, encontrado no recém-descoberto "caderno secreto" da Alma pois nele ela revela o seu ressentimento pela "incompreensão" (afinal compreensível) da nossa mãe, diante do incesto de seu filhos. Mas notem que nele a palavra "gnose" é a chave para o entendimento da postura espiritual e física da Alma na sua relação com Rôdo. (Lúcia Welt)

A Escolha (de Alma Welt)


(212)

Vinha pela estrada o ancião,
Imensa barba branca e um mistério,
Meu pai o avistou, chamou Galdério
E pediu-lhe pra trazê-lo ao casarão.

Diante da família, o olhar perplexo,
Muito gasto daquele pobre ser
Chegava a compungir, a comover,
Parecia tirado do seu nexo.

E depois de tomar a boa sopa,
Balbuciando pediu pra retornar
Ao leito da estrada, e caminhar.

Pois embora aceitasse alguma roupa,
Errar pela estrada até morrer
Era escolha, pra não mais interromper.

29/11/2006

Nota da editora:

Fui testemunha também deste fato, e me lembro bem de que Alma reconduziu o ancião até a estrada, acompanhou-o um pouco de braço dado, e depois o deixou afastar-se sozinho, ela parada, olhando. Então fui até ela, imóvel no meio da estrada e ela sem se voltar disse:
"Ele é o Tempo, percebeste? Não se pode detê-lo...
(Lucia Welt)

Sonho pampeiro (de Alma Welt)

(211)

Pleno pampa poderosa pradaria,
Um céu maior e mais profundo;
De noite as estrelas e seu mundo
A mirar-nos com sobranceria.

Ah! As alongadas sombras das coxilhas,
Pela branca lua cheia a surfá-las
São algumas das tantas maravilhas,
Que eu quisera em sonho suborná-las

E assim, nua, de noite, em desatino
Cavalguei até dormir por sobre a crina
E traída ser trazida ao meu destino,

Pois eu quis perder-me, e feminina,
Ser cobiçada e levada por rei Mino*
Ao seu oculto palácio da campina...

15/01/2007

Nota da editora:

"rei Mino"- Os leitores já familiarizados com o universo poético da Alma, sabem que na sua mitologia particular ela assim denominava o vento minuano, que lhe inspirava temor, respeito e fascinação. (Lucia Welt)



O espectro (de Alma Welt)

(210)

Em noites frias aqui no casarão
Acontece do meu leito levantar
E enrolada num pala ir ao salão
Para sentir o silêncio crepitar

Na lareira, pois ali sou visitada
Por um mundo de imagens agradáveis
Que me trazem poemas inefáveis
Ou alguma coisa inusitada.

Foi ali que num lance inesquecível
O espectro da Mutti afinal veio,
Que fora tanto tempo inacessível,

E que porfim estendia-me os braços
Dizendo:"Filha, faltaram-nos abraços,
Quisera agora sentir-te no meu seio."

16/01/2007

Nota da editora:

Nossa mãe, Ana Morgado, que chamávamos Mutti, faleceu quando éramos adolescentes(Alma tinha 16 anos) tinha dificuldade de compreender o temperamento artístico da Alma, e havia muita dificuldade de relacionamento entre as duas, uma vez que Alma, apesar de aparentemente meiga era rebelde e tinha o respaldo do nosso pai, o Vati que tomara a sua educação em suas mãos e a criara como uma pequena pagã, em contato com a Arte e com os deuses do Olimpo e do Walhalla. Dir-se-ia que ele fazia uma espécie de experiência com sua filha predileta. Ele disse uma vez que faria da Alma não só uma artista, mas uma obra de arte. Alma teve muitos momentos penosos de conflito, incomprensão e intolerância por parte da Mutti, chegando mesmo a ser algumas vezes açoitada com vara de marmelo. Tudo isso transparece aqui na série dos "Sonetos Pampianos da Alma".
Este soneto me comoveu, pois revelou uma reconciliação, de algum modo, entre elas. (Lucia Welt)


Percepção (de Alma Welt)

(209)

Tem dias em que vejo claramente
O quanto necessito de alegria.
Estou só, sou bela mas carente,
E o mundo já disso desconfia.

Não há soluções para o viver
E a tragédia me espera, universal.
Quero viver, gritar pra não morrer,
O que posso escolher como um final?

De tanto acreditar que estava quite
Com o amor, sonhando o dia-a-dia,
Perdi a fé e noção do meu limite.

E por tecer grinalda em minha mente
Ao registrar o olhar pela poesia,
Tornei-me Ofélia de um cantar demente...

17/01/2007

Nota da editora:

Um soneto como esse, que acabo de encontrar no "caderno secreto" da Alma, se o tivesse descoberto a mais tempo me teria induzido a acreditar no suicídio da minha irmã cuja morte ocorreu dois dias depois de tê-lo escrito. Mas como foi recentemente solucionado de maneira nada consoladora o enígma de sua morte, tendo sido comprovado o seu assassinato, posso somente atribuir a um momento de desencanto existencial ou à angústia premonitiva de minha irmã, pois ela pressentia sua morte eminente e trágica, como seus últimos sonetos o sugerem. (Lúcia Welt)



De pôquer e Da Vinci (de Alma Welt)

(208)

Rôdo, irmãozinho, estás de volta
E jogas cartas e dinheiro sobre a mesa.
Talvez penses aplacar minha revolta
Com os signos da tua realeza.

Eu sei que pouco perdes e mais ganhas
E que o pôquer é "cosa mentale",*
Que como a arte do Da Vinci isso vale,
Já conheço teus recursos e barganhas.

Mas, irmão, não vês que ficas longe
Por tempo demais para esta Alma
Que está longe de ser como o tal monje*

Que enviou o companheiro ao monastério
Em missão, e esperou com tanta calma
Que o reencontro foi no cemitério?

03/01/2007

Nota da editora:

"cosa mentale"- Leonardo Da Vinci escreveu num códice seu que "pittura è cosa mentale", enunciando de maneira pioneira o conceito de pintura como expressão intelectual e mesmo "conceitual", o que seria grato à crítica do século XX, ou seja da "arte moderna". No soneto da Alma ela parece se referir a uma conversa que teve com Rôdo, em que ele teria defendido sua obsessão pelo pôquer como por uma arte intelectual e profunda.

".. o tal monje"- Não foi possível identificar ou reconstituir essa estória, talvez um "koan" zen, a que Alma estaria se referindo nestes versos. Desconfio que Alma inventou esta estorieta, como ela fazia muitas vêzes, para justificar idéias suas num verso, tal como já o fazia Jorge Luis Borges, o que aliás é prerrogativa dos grandes poetas: criar suas próprias lendas e mitos e citá-los como se já fossem do conhecimento universal, o que é no mínimo muito divertido. (Lucia Welt)


Vento Haragano (de Alma Welt)


(207)

Uma tarde caminhando no meu prado
Fui surprendida por um vento quente,
Súbito, oblíquo e eloqüente,
Que parecia estar bem humorado

Pois que levantou a minha saia,
Bah! Eu estava sem calcinha
E ouvi um som como uma vaia,
Imaginei, pois estava ali sosinha.

Então sem sequer muito escurecer,
Logo a chuva quente desabou,
Deliciosa, que chegou a comover.

E eis que me despi naquele plano
Com a chuva, o vento e o seu show:
Eu acabava de encontrar o haragano...

19/10/2006



A Herança (de Alma Welt)

(206)

"Minha Alma, tu és a minha herdeira,
Aquela a quem doei minha cultura
Angariada nos livros, e és a futura
Poetisa-musa estancieira"

"A quem caberá ser e irradiar
O saber herdado e a justiça
Que é a conseqüência do pensar
Correto, claro e sem cobiça."

Assim falou meu pai, que eu chamo Vati,
Werner Welt, o grande pianista
Que herdara o que já fora do mate

E então como vinhedo produtivo
Lhe permitira com zelo tal cultivo
Da Alma e sua vinha ilusionista...

12/01/2007



A escolta (de Alma Welt)


(205)

Meu pai era um homem de cultura
Em meio a peões um tanto rudes
Mas isso não causava ruptura
Mas apenas diferença de atitudes

Pois a verdade é que o viam como rei
Para além do patrão estancieiro
E era tão belo e alvissareiro
Percebê-lo, que uma vez até chorei.

Foi quando chegou de uma viagem
E Galdério foi buscá-lo na estação
Com a charrete e uma escolta de peão,

E ele entrou na alameda a cavalo,
Galdério na charrete com a bagagem,
Um a pé e outros dois a ladeá-lo.

04/12/2006

A Mandrágora (de Alma Welt)


(204)

"Alma, esta é a mandrágora,
A raíz que grita se arrancada,
Mas não tema, não vou fazê-lo agora,
Pois ainda não estás preparada."

Assim disse Frida, a minha avó
Que tinha um aspecto de assustar
Mas que gostava de encenar
O papel de feiticeira, e era só.

E então, uma noite, eu o fiz:
Fui ao jardim e a arranquei
Puxando pelas folhas a raíz.

Mas o susto foi dela ou o contrário?
Pois o terrível grito eu escutei
Vindo do fundo do meu imaginário...

05/01/2007



Nobrezas (de Alma Welt)

(203)

Vinha um cavaleiro pela estrada
Que meu pai acompanhava desde longe,
Mas não foi buscar a espingarda
Nem ficou imóvel como um monge.

Agitou-se e me disse emocionado:
"Alma, é o Rogério, meu amigo,
Reconheço-o pelo seu jeito montado,
Como se fora cavaleiro antigo."

"Ninguém monta mais como o Rogério,
Que denotava a sua nobreza
Tanto sobre a sela quanto à mesa."

"Alma, peça pra Matilde e pro Galdério
Prepararem estrebaria e almoço
Que precisamos ser dignos do moço."

08/11/2006

Palavras ao padre (de Alma Welt)

(202)

Entre, padre, e queira desculpar-me
Mas não perca tempo em doutrinar-me.
Sou pagã praticante e amo os numes,
Os deuses que ouvem meus queixumes.

Meu pai criou-me em pleno Olimpo
E com muitas visitas ao Walhalla.
Por isso, padre, jôgo limpo:
A vida só me fez por mais amá-la.

Se me vens falar do Senhor Cristo,
Garanto que ele tem o meu respeito
E creio que ele saberia disto:

Sou inocente como uma criança
Já que sou poeta e tenho feito
Da minha vida um canto de esperança.

16/01/2007



A esquisita (de Alma Welt)

(201)

Minha mãe quis mostrar-me pr'as visitas
Apesar de minhas maneiras "esquisitas",
E pediu-me que cantasse umas canções
Ou recitasse um verso de Camões.

E eu, para honrar a minha fama
Fui passando muito além da Taprobana
E meti um soneto da minha lavra
Com a melhor das intenções... palavra!

Ainda mais com minha ênfase de atriz,
Já que aquele minha mãe não conhecia,
E fiz a pobre corar até a raíz

Pois com verso controverso não contava,
E às visitas logo mil perdões pedia
Enquanto eu da sala me esgueirava...

28/10/2006

Estórias do Galdério (de Alma Welt
(200)

Galdério, meu querido charreteiro
Anda sempre a caráter, de bombachas
E um punhal de prata sob faixas
Que lhe cingem a cintura qual toureiro.

Mas nunca esse punhal ele tirou
E oferecendo-me uma fruta na charrete
Pediu ao Rôdo emprestado o canivete
E percebi o olhar que este lançou.

Então, mais tarde lhe roguei
Que findasse o mistério do punhal
Retirando-o da bainha, afinal.

Ele o fez, e ao meu espanto respondeu:
"Ele inteiro matou amigo meu
Mas a metade ficou nele, e os enterrei."

19/11/2006


Estória da Matilde (de Alma Welt)

(199)

Matilde, que agora reza e reza,
Houve tempo em que abria para mim
E contou-me que dentro dela pesa
Um remorso imenso e sem fim.

Ela deixara um filho natural
Num orfanato, só, por indigência,
Mas ao buscá-lo em penitência,
Soube de algo terrível e fatal:

A criança se fora num inverno
Em que o minuano assaltara
O casarão gelado e a levara...

Então Matilde andou pelo Inferno
Por dez anos até que o Galdério
A encontrou a dormir num cemitério.

12/01/2007

O pedido (de Alma Welt)

(198)

Tanto que a Mutti me dizia
Que o destino da mulher é o casamento
Que até para mim chegou o momento
De dar o sim a alguém que me pedia

E que fora um colega meu de escola
Desses que nunca pediu cola
E que me tinha tal veneração
Que junto a mim travava, em comoção.

Então chegou um dia resolvido
E diante dos meus pais fez o pedido
Balbuciando, trêmulo e alvar.

Puxei-o e disse, ali, na sala ao lado:
"Darei pra ti, esta noite, com agrado,
Se prometeres nunca mais voltar."

01/12/2006

Nota da editora:

Fui praticamente testemunha deste episódio que escandalizou o rapaz e irritou nossa mãe que, na verdade, não soube, claro, do motivo do sumiço do "noivo" (que diga -se de passagem, teve suficiente hombridade para retirar-se sem cobrar a promessa da Alma.
Minha irmã era sensível mas não sentimental, e não aceitaria casar-se com um rapaz tímido e inseguro, por melhor que fosse em outros aspectos, pois ela admirava a coragem, a desfaçatez e até o cinismo viril do nosso irmão Rôdo, pois uma das virtudes que ela mais admirava em alguém, era, como ela dizia, o "savoir -faire". (Lúcia Welt)


Noturno (de Alma Welt)

(197)

Entre o casarão e o vinhedo
Está o jardim dos meus amores
Que de dia acolhe o folguedo
De guris e gurias entre as flores.

Mas nele eu navego em noite cálida
Sob a luz de uma lua espectral
Refletida e tornando-me mais pálida
Como pequena gôndola irreal

Que singra entre touceiras prateadas
Deixando rastro: cintilantes vagalumes
Companheiros de noturnas caminhadas

Sob a guarda do Negrinho e as Três Marias
Que ainda me protegem dos queixumes
Dos sonhos mortos e das fantasmagorias...

15/12/2006



De lobos e guris (de Alma Welt)

(196)

Minha mãe dizia haver um lobo
No bosque aqui perto e emboscado
E que eu deveria ter cuidado
E nem sequer ir ali com o meu Rôdo,

Pois meu irmão, guri bem destemido,
Não seria páreo pro vilão
E que depois de assado e comido
Eu seria a sobremesa alí à mão.

Mas a curiosidade era mais forte
E eu entrava com ele ou sozinha
Embora jogássemos com a sorte

Pois a verdade era que eu creía
Haver o lobo que comia criancinha,
E até hoje ainda creio: o lobo havia.

13/01/2007


Meu reino (de Alma Welt)


(195)

Verdes manhãs da minha infância
Em que eu corria após o chimarrão
Por sendas do jardim aqui da estância
Como se me alçasse deste chão!

Pois eu voava, sim, eu percorria
Aéreos caminhos em minh' alma
E conhecia este pampa como a palma
Embora em minha mente de guria

Que vivia em doce ambigüidade
Os receios próprios da idade
E uma imensa coragem de viver

Pois era o meu reino a pradaria
E eu era a princesa por nascer
Brotada do meu chão de fantasia!

28/11/2006


O fantasma (de Alma Welt)


(194)

À meia-noite um fantasma aparecia
Nos dez primeiros anos do vinhedo...
Minha avó é quem contava esse enredo
E justamente a mim que era guria.

Sim, ela dizia, o Valentim
Ferro, o antigo dono estancieiro
Que como em romance folhetim
Enforcou-se numa trave do telheiro.

E então eu me punha em vigília
Que por certo não chegava à meia-noite,
Que há muito já dormia esta família.

Mas afinal, meu leitor, também o vi,
Mas no imaginário, não se afoite,
Pois nele é que viver eu escolhi...

14/11/2006


O trem (de Alma Welt)

(193)

Quando aqui chegava o nosso trem
Na pequena estação perto da estância
Era uma festa enorme para alguém
Que amava os signos da infância.

Os ruidos, silvos e a fumaça,
O vapor envolvendo qual neblina
O vulto espectral de uma menina
Muito branca atrás de uma vidraça...

Era eu que olhava e que me via
Como sempre em tudo em minha vida
Narradora e personagem escolhida

E que esperava a mim na plataforma
Para abraçar-me em meio a algaravia
Daquela multidão quase sem forma.

17/11/2006



Galopa! (de Alma Welt)

(192)

Galopa, meu pingo, pelos prados,
Que me agarrarei à tua crina,
Sem sela, nua e a pele fina,
Com meus cabelos soltos e ondeados!

Deixa-me sentir o teu calor
Na minha vulva em ti assim colada
Que trocará contigo o teu suor
Pela minha seiva destilada.

E se os peões que porventura toparei
Disserem que me viram nesse lance,
Branca, bela e nua... eu direi

Que deixaram-se levar pelo espanto
E me viram já longe do alcance,
Através de um leve e alvo manto...

15/01/2007


Cavaleiro (de Alma Welt)

(191)

Meu cavaleiro, leva-me contigo
Embora eu saiba muito cavalgar!
Mas para onde levaria meu umbigo
Se o meu destino eu mesma carregar?

Voar nas asas do condor do pampa,
Quisera ir ao longe em outra asa,
E ver o mundo não como uma estampa
Folheada em livro aqui de casa.

Ser levada, conduzida, sem escolha,
Por um forte coração, ó fantasia!
Sentir a mão do outro qual poesia

Que traça o rumo próprio do meu verso
E que no espaço exíguo de uma folha
Me conduz por todo um universo!

09/01/2007

Nota da editora:

Neste soneto, Alma, que foi sempre muito autônoma e livre, manifesta a secreta e profunda fantasia feminina de ser levada, conduzida, raptada pelo forte destino e coração de um cavaleiro, isto é, do amado. A abdicação, voluntária ou não, de um destino próprio, fez a história feminina ao longo dos séculos e lançou raízes no inconsciente coletivo das mulheres. Alma aqui justifica em termos poéticos essa escolha da não escolha. Em que pese a beleza e o lirismo do soneto, ele expressa um instante de desfalecimento ou de renúncia da usual rebeldia da poetisa Alma. (Lucia Welt)


A selva (de Alma Welt)


(190)

Entrando no vetusto casarão
Procuro logo aquele sacro espaço
Da biblioteca, um bom salão
Com seus dez mil livros como um laço

Que me envolvia toda na infância
E não podia mais sair, mas sem revolta
Lendo e mais lendo com ganância,
Sentindo o mundo todo à minha volta.

E foi ali, numa mesinha para mim,
Que meu pai instalou especialmente,
Que a Poesia brotou em minha mente,

E assim como um piá ou curumim
Do silêncio daquela selva emerso
Veio à luz o meu primeiro verso.

08/01/2007


Resumo da ópera (de Alma Welt)


(189)

Sob o casarão por qual lutava
Foi por mim e meu cunhado descoberta
A grande adega, ao ser aberta
Uma parede secreta que girava.

E foi-nos revelado um tesouro
De toda uma safra dos avós
Que ficara maturando no escuro
Desconhecida de meu pai, de todos nós

Que lutávamos pela casa e os vinhedos
E todos estes belos arredores,
Quando já faltava a temperança.

E foi desta senzala e seus segredos
De infâmia, injustiça e seus terrores
Que surgiu novamente a esperança.

04/12/2006

Nota da editora:

Realmente este soneto é um resumo do entrecho básico do romance A Herança, em que Alma contou a sua luta para salvar a nossa estância e seu vinhedo. Assolada por dívidas tivemos prestes a perdê-la quando se instalou uma disputa entre Solange e Geraldo, de um lado, e Alma, Rôdo e eu de outro. O soneto se refere a um incrível momento(real como tudo o que a Alma escrevia)em que ela descobriu, por ter vigiado Alberto, o marido bêbado de Solange, que este descobrira uma passagem secreta da nossa adega, uma parede giratória que dava para outra adega muito maior, imensa, antiga senzala desconhecida por nós sob o casarão, onde estava depositada a safra secreta do melhor vinho dos nossos avós, e que salvaria a estância de suas dívidas, não fosse... Bem, os leitores terão que esperar o romance da Alma ser publicado em livro para saber o que aconteceu nessa saga real e ao mesmo tempo romanesca. (Lúcia Welt)


O olhar do Mundo (de Alma Welt)

(188)

Sinto o olhar do mundo sobre mim.
"És narcísica", dirá um entendido,
Mas sei que o que sinto faz sentido,
Como autora, e não qual manequim.

Sim, porque tenho o que dizer
E dar ao mundo, doar e bendizer
A graça do talento e deste olhar
Que quase tudo consegue desvendar

Pela chave da poesia e da beleza
Que vai os seres e as coisas desvelar
No que nem parece permitido

Aos olhos cansados de aspereza,
Que pela arte e ofício de contar
Devolve ao mundo seu cerne coibido.

12/01/2007


O Jardim da Modéstia (de Alma Welt)

(187)

A pradaria conflui com meu jardim,
E este pequeno reino já a invade
Com espécies fidalgas, na verdade
Vistas com respeito até por mim.

Mas é nos prados mesmo, agrestes,
Onde flores rudes e silvestres
Reinam para glória do meu pampa
Que a caixa da Natura abre sua tampa

E derrama um prodígio para todos
Que aqui vêm fazer os seus conclaves:
Insetos, passarinhos, borboletas.

Então eu cavalgo sem entraves,
Princesa que aqui perdeu seus modos,
Recebida num jardim de violetas.

08/01/2007

Nota da editora:

Fiquei deslumbrada com a descoberta deste soneto, que por sua graça e sutileza deve figurar, a meu ver, entre as obras-prima da Alma. Notem a alegoria que ele contém, já que a violeta, espécie nativa brasileira, é tida tradicionalmente como flor símbolo da modéstia. (Lúcia Welt)



Jogos do Amor (de Alma Welt)

(186)

Meu irmão aprendeu a fazer mágica
Com as cartas, já que é um jogador
E mostrou-me um truque encantador
Não fora a conseqüência quase trágica

Pois fazia aparecer um ás no pôquer
Numa certa seqüência de cartada.
Mas não resistiu, numa noitada,
A fazê-lo em pleno jogo, pra valer.

Nessa noite ele voltou muito ferido
E o tratei condoída e consternada,
Que nunca o vira assim desprotegido,

Pois que, pra quem está acostumada
A vê-lo e tratá-lo como herói,
Descobri-lo vulnerável... ah! como dói!

07/01/2007


Memórias (de Alma Welt)


185
Ontem, eu corria, livre em mim
Em torno à minha casa avarandada
Soprando as sementes do capim,
Mais que observando: integrada

Às lindas coisas da relvas e do ar,
Pequenas flores, insetos a voar,
Aves, nuvens, o vento nas coxilhas
Nesse desfilar de maravilhas.

Então ouvindo o piano, o som do rei,
Eu corria para vê-lo no escritório
(já que era ali seu território)

E de bruços me punha estendida
Num tapetinho debaixo do Steinway,
Que era a prova do quanto era querida...


O peão (de Alma Welt)

(184)

Hoje de manhã chegou à estância
Um peão estranho, cavalgando
Percebia-se de mui longa distância
Pois vinham vagarosos mas suando

Ele e seu pingo, que tratamos,
Depois conduzimos o peão
Até a cascatinha e o deixamos
Pra que tomasse um banho com sabão.

Então se apresentou, ó emoção!
O mais belo peão já avistado
Por aqui, e até mesmo barbeado.

E eu o contratei porque a beleza
Me parece essencial e condição
De uma bem legítima esperteza.

06/01/2006

Mitos (de Alma Welt)

(183)

No monte Ida o belo Páris
Pastoreando foi por deusas visitado,
Três, as mais belas do reinado
De Zeus, que as mantinha pelos ares.

Queriam fazer do pastor-príncipe
Amado, exclusivo e bom freguês,
Em troca d'uma opinião partícipe:
Qual seria a mais bela das três?

Mas, perguntam meus leitores,
Algo a haver com o mito desta Alma
Que na rede tem seus eleitores?

No mundo virtual com suas pesquisas,
Entre as belas, eu levar a palma
Quisera, em meio às poetisas...


18/12/2006

O Vinho da Alma (de Alma Welt)

(182)

Se me pergunta o mundo o que quero
Com tanto sonetar, tanto dizer,
Se não posso um pouco me conter,
Partir meu dia, assim, do ponto zero;

Viver o hoje sem interpretá-lo,
A hora e o minuto simplesmente,
Como uma ampulheta ou um gargalo
A gotejar o vinho ou a semente;

Eu respondo que assim como me vê,
Escrever é ver, aurir e degustar
A vida como um vinho em minha boca

E como um esmerado sommelier
Cuspir somente se for pra declarar
O prazer da dose, que é tão pouca...

22/12/2006



Palavras da Matilde (de Alma Welt)

(181)

Alma, volta logo, não nos deixe
Preocupados aqui com a princesa.
Sei que estás no prado como um peixe
Na água, alegria e... afoitesa.

Ontem um peão te viu pelada
A cavalgar como se não fosse nada.
Quem conta conto, eu sei, um ponto aumenta
E tua brancura é que os desorienta.

Mas olha, guria, boa prenda
Fica em casa a fazer teia de renda
Até o momento feliz de a recolher,

Pois queiras ou não tu és mulher
E o nosso destino não escolhe
Senão dever, marido e vasta prole.

02/12/2006



A Herança, ou Na cabeceira do avô (de Alma Welt)

(180)

Meu avô era homem de palavra
E a tinha só na força concentrada,
Toda nervos, olhar, e aquela trava
Na maxila tensa e pesada.

De outras poucas palavras, nada terno
Era incapaz de uma carícia,
Persistente e tenaz como se eterno,
E totalmente isento de malícia.

Mas foi o velho boche grandalhão
Que me chamou à cabeceira bem no fim
E segurou com brandura a minha mão.

Depois tocando leve a minha testa,
Disse piscando o olho para mim:
"Alma, fiz o vinho, faça a festa."

13/01/2007

Nota da editora:

Emocionou-me este soneto primoroso, que considerei de imediato mais uma obra-prima da Alma, e que me fez lembrar do velho Joachim Welt, que Alma tão magistralmente descreveu no soneto, e que eu não sabia ter doado tão bela herança em poucas palavras para a verdadeira herdeira do vinhedo de sua vida. (Lucia Welt)



Manhã (de Alma Welt)

(179)

Matilde, prepara-me o amargo
Que quero sair e pôr-me ao largo
Navegando ao vento na campina
Como nau que a branca vela empina.

A brisa a fluir no azul profundo,
Pode mais propício estar o mundo?
Quem foi que disse ser um sacrifício
A vida, o viver e seu ofício?

Olha aquele umbu ali ao sol
Coalhado de pássaros qual flores
A agitar-se como agitam-se os amores!

Dá-me, Matilde, uma côdea de pão
Que vou a mastigar com o chimarrão
Enquanto examinas meu lençol!*

29/11/2006

Nota da editora;

Como alguns já perceberam por outros sonetos e crônicas, Matilde, nossa ex-babá, teimava em continuar vigiando a Alma, e até a examinar os lençóis de sua "princesa" para coibí-la de seu "pecado", pois tinha conhecimento, desde sempre, da relação da Alma com seu irmão. Minha irmã, espirito livre e cheia de senso de humor tratava Matilde com enorme carinho como a uma mãe devotada, embora um tanto superprotetora e até rabujenta. Nunca vi a Alma se aborrecer realmente com a Matilde. (Lúcia Welt)


O balanço da vida (de Alma Welt)

(178)

Ontem grande árvore caiu
Na orla da minha pradaria
Arrancada por imensa ventania
Como por muito tempo não se viu.

E então eu fui examiná-la
E constatei que era roída por cupim.
Num instante cessei de deplorá-la
Meditando como tudo tem um fim,

E cogitei que o vento a derrubar
Não fora por acaso ou penitência
Nem tampouco puro gesto de clemência,

Pois não há injustiça na Natura
E tudo segue um balanço regular:
Vida e Morte, não sorte e desventura.

28/06/2006




Pecado original (de Alma Welt)

(177)

Pelos meandros da minha consciência
Às vezes topo com escolhos sem idade
Que interrompem o fluir e a coerência
De uma vida que se quer em liberdade.

Mas o que é este mal que não se quer?
Será o tal pecado original
No qual nunca acreditei sequer?
Que tenho eu a haver com esse tal?

Talvez não mais que um gosto de sofrer,
Sentir prazer na dor que encontro em mim,
E um medo angustiado de morrer,

Uma carência de amor inatingível,
Uma vontade de ser mais, indefinível,
E um orgulho de ser poeta assim...

14/01/2007



Integração (de Alma Welt)

(176)

Me lembro de um momento de guria
Em que senti total integração
Com o instante e a alegria
De ser e pertencer, em comunhão

Com o local, as pessoas, a família,
E com os peões ali em torno;
Digo mais: até com a mobília,
As árvores, as coxilhas, o contorno

De minha terra que ia ao horizonte,
E o mundo inteiro parecia
Provir do meu amor, única fonte

Que aquele universo produzia,
E que era verdade e o segrêdo
De estar no mundo não como um degrêdo.

15/12/2006


Palavras ao Galdério (de Alma Welt)

(175)

Galdério, "gáutcho" macho e fiel
A serviço desta Casa e casarão,
Com tua força doce como mel
E tua voluntária servidão,

Como dizer quanto sou agradecida
Pelo teu carinho, ó charreteiro
Que me pegavas no colo adormecida
E confiante em tuas mãos de escudeiro,

Que cuidavas não das armas mas das prendas
Do teu patrão, o fidalgo vinhateiro,
Maestro e colecionador das lendas

Do vinho e do homem verdadeiro,
E que soube desde logo avaliar-te,
A ti que fazes do servir a tua Arte?

12/01/2007


Palavras à Lúcia (de Alma Welt)


(174)

Doce Lúcia, irmã mais parecida
Comigo do que talvez quiséssemos,
Que viveste tanto tempo sem guarida
No meio dos teus sem que soubéssemos,

Pois que eras casada com um tirano
A te fazer sofrer, que te humilhava
Como se foras um farrapo humano,
Não mais que um joguete, uma escrava.

Ah! Se eu soubesse, bem que havia
De prestes te tirar de onde estavas
E haveria de virar a tua mesa

Fazendo-te olhar a tua beleza
E os dons que sem saber desperdiçavas,
A represar em ti tanta poesia!

15/01/2007

Nota da editora:

Emocionadíssima encontrei no caderno recém-descoberto, que passarei a chamar de "Caderno secreto", estas "Palavras..." de minha irmã dirigidas a mim, que me revelaram o quanto ela me amava e se preocupava com minha deplorável situação conjugal, que não obstante deve ter sido de destino (como sempre é), pois meu péssimo marido de qualquer forma legou-me dois filhos lindos e preciosos, que não herdaram nenhum dos seus terríveis defeitos, mas sim as suas qualidades. (Lúcia Welt)


Palavras ao Rôdo (de Alma Welt)


(173)

Rôdo, meu irmão, hoje não jogues,
Algo me constrange o coração,
Só peço que fiques, dialogues
E esqueças esta noite e sua mão.

Sonhei com um Royal Straight Flush
Sobre negra mesa de baralho
E depois um vermelho como um flash
Sobre as cartas, a mesa e o assoalho.

Então, irmãozinho, não me negues
Só um dia do teu jogo vou pedir,
E o de hoje peço que me entregues.

Depois quando o sol se levantar
E todo o nosso Pampa despertar,
Podes, de mim, no teu leito despedir...

12/01/2007

Nota da editora:


Me lembro bem desse dia. Nosso irmão Rôdo, jogador semi-profissional de pôquer, que saía quase todas as noites para jogar nas cidades vizinhas, assim como já o fez por meio mundo afora, aquela noite atendeu o pedido da Alma, pois aprendera a confiar nos pressentimentos dela desde a infância. Alma ia além disso e tinha um notável dom de vidência. Tenho certeza que o sonho da Alma e seu pedido salvaram naquela noite a vida do nosso irmão, cuja imensa sorte e habilidade no jogo despertavam freqüentemente invejas e ódios em alguns parceiros. É curioso também, neste soneto certa ambigüidade, pois o último verso dá a entender que como compensação ela dormiria com ele aquela noite, ou mesmo que todo o suposto sonho tenha sido um pretexto para isso. (Lucia Welt)


Palavras à Mutti (de Alma Welt)

(172)

Mutti, embora não me entendas,
Já que a ânsia da Poesia tu estranhas,
Quero agradecer às tuas entranhas
E ao teu calor pr'além das reprimendas

Pois embora tua vara ou o teu relho
Tenham só me ensinado a querer mais,
Eu nunca esquecerei aquela paz
De um momento junto do teu seio

Em que uns carinhos mais profundos
Aproximaram por instantes nossos mundos,
Embora isso fosse rima fácil...

E assim, não importa que não queiras
Que eu seja mais que guria muito grácil,
Pois, sem querer, abriste-me as porteiras.

15/01/2007



Jogos do Fogo (de Alma Welt)



(171)

Noites do meu Pampa, inesquecíveis,
Em bivaque sob estrelas, mateando,
Meu irmão e eu dolentes e sonhando
Conosco como sendo imperecíveis

No sonho de sonhar o impossível
Que era para nós permanecermos
Para sempre no minuto intangível
De ali estar e ao outro pertencermos.

Ah! E que nada jamais superaria
A doce sensação de sermos fogos
Embora o fogo nos quisesse outra via

E para isso logo nos apartaria
Levando-nos, os dois pra outros jogos,
Nas sortes, nos azares, na Poesia...

03/01/2007


O sonho da Alma com o Pavão Misterioso (de Alma Welt)


Sonhei-me em miniatura e despida
Num berço flutuante e noturno,
Mas eu era guria já crescida
E tornada uma estrela por meu turno,

Que logo revelou-se-me em pavão
Cuja cauda eram contas de mil olhos
Como num mar escuro os abrolhos
Que evitar seria esforço vão.

Mas havia um som vindo do berço
Feito por músicos vestidos de gibão
Que desfiavam as contas como um terço

Dentro daquela nave delirante
Que me punha mais nua a cada instante
À medida que chegava no Sertão.

14/05/2004

Nota da editora:

A rigor este soneto não pertenceria à serie dos Sonetos Pampianos, mas como o encontrei no caderno recém-descoberto da Alma e o achei belíssimo e intrigante, decidi publicá-lo aqui. O Pavão Misterioso é o mito nordestino que mais a instigou e permeou o seu riquíssimo universo interior, inspirando-lhe um conto (publicado em livro) entitulado "Na Trilha dos Menestréis", e sua continuação no romance inédito "O Retorno dos Menestréis" (Lucia Welt)


O Vento e o Maestro (de Alma Welt)

(170)

Ontem soprou forte o minuano
E bateu todas as portas e janelas
E ainda passou por baixo delas
Para fazer vibrar nosso piano

Que pôs-se a tocar feito um espectro
De música, se é que isso houvesse,
Como uma paródia do Maestro
Que legara seu silêncio como prece

Pois pra que este emoldurasse
Sua música e em nós reverberasse
Nosso pai o tocava de outro plano

Então pedi perdão e o dedilhei
Pr'afugentar rei Mino, o tal tirano
Que invadira as cordas do Steinway...

22/06/2006

Nota da editora:

Fiquei pasma com a síntese poética com que Alma contou neste soneto esse episódio de que fui testemunha. O minuano invadira a casa e julgamos ouvir as cordas do piano na biblioteca vibrando como um órgão, instrumento de cujo som Alma não gostava e do qual tinha medo. Então pela primeira vez desde a morte do Vati sentou-se ao piano e tocou-o, numa espécie de concerto em meio à orquestra lúgubre da ventania. Ela parecia um pouco delirante e fiquei muito assustada, embora ela estivesse tocando magnificamente como se tomada pelo "maestro", como nosso pai era às vezes chamado. Ela só parou quando o vento passou. Eu e ela estávamos lívidas, mais brancas do que já eramos, segundo a Matilde que ouvindo o piano do patrão, veio da cozinha, assustada, para ver o que se passava. (Lucia Welt)


Memórias do casarão (de Alma Welt)


(169)

De noite o velho casarão estala
E geme repleto de lembranças...
Então o imaginário se instala
Nos corações e cobra suas heranças

Que vêm de ainda antes dos avós
E remontam ao "gáutcho" Valentim
Que no comando fez ouvir a sua voz
E teve em si mesmo o seu motim.

No sotão sob a trave onde pendeu
Nenhuma marca no assoalho denuncia
Onde o banquinho rolando se abateu,

Mas o aroma do mate derramado
Quando a cuia tombou sob o enforcado,
Eu julguei sentir quando guria.

14/11/2006


Nota da editora:

Nosso avô Joachin Welt, agricultor alemão que veio para o Brasil em 1930, emigrado dos sudetos da Polônia, para o vale do Itajaí em Santa Catarina, tendo prosperado depois de décadas numa colônia agrícola, comprou a estância de uma família estancieira gaúcha de grande tradição mas arruinada por guerras, dívidas, dissipações. O dono, Valentim Ferro, homem de apenas 48 anos, desesperado e pressionado pelos credores de jogo, sem saída, vendeu a estância ao meu avô, com a família ainda dentro do casarão, e no dia seguinte à passagem da escritura, foi encontrado enforcado na trave do sotão. Estava todo ataviado a caráter, com as bombachas, bota e esporas, punhal de prata na cintura e boleadeira, lenço vermelho e chapéu na cabeça pendida. No chão, ao lado do banco tombado debaixo dos seus pés, estava caida a cuia e a bomba do chimarrão com o amargo esparramado, ainda fumegante quando meu avó por pressentimento subiu ao sótão. A família Ferro, viúva e filhos pequenos, depois do velório no salão, e o enterro no cemítério particular da própria estância, deixou a casa num carroção entulhado de lembranças pessoais. Minha avó Frida conta que viu uma guria de 10 anos, filha do casal, cerrar o punho e brandí-lo contra o casarão e os "boches" e teve certeza de que a criança lançara um anátema. Isto se espalhou e criou uma fama de maldição sobre a casa e a nova família. Não obstante pela imensa força de vontade de meu avó que plantou o vinhedo de seus sonhos, a estância que meu avô rebatisou com o nome de uma santa alemã, Santa Gertrudes, prosperou, mudando as suas caracteríticas tradicionais de criação de gado, produção de charque e mate, pela vinícola pioneira no pampa, e pelo estilo tradicional do lagar de uvas amassadas com os pés. Alma incluiu essa estória de maneira magnífica no seu romance autobiográfico A Herança. (Lucia Welt)

A primadonna, ou A grande Ópera do Pampa (de Alma Welt)

(168)

As minhas pradarias vou cantar
Como nenhuma prenda já o fez,
Ser a guria pampiana que desfez
O mito da mulher feita pro lar,

Que incapaz de montar feito um peão
E laçar, lançar boleadeiras,
Ou comandar essas videiras,
Seria uma chinoca de patrão;

Sim, eu vou cantar mais alto,
Ser uma primadonna sem maus-tratos,
Cuja voz seria de contralto,

Nesta pampiana ópera divina
Pois o Grande Diretor fechou contratos
Somente para vozes como a minha.

13/11/2006


Prece (de Alma Welt)

(167)

Pelas tantas ansiedades que causei
À minha pobre Mutti e à doce Lúcia
Por quem por minha vez me preocupei
Por ela estar casada com a malícia

Na forma de homem cheio de perigo
Que tantas misérias lhe causava
E a quem um mau destino esperava
Não antes de levar outra consigo;

Pelos danos que às vezes me causava
O risco que imprudente enfrentava;
Pelos erros e talvez só impotência;

Por minha ardente incontinência
Pelos desejos, a quem tanto servia,
Perdoai-me, meu Deus, eu não sabia...

17/01/2007

Nota de editora:

Este soneto em especial me comoveu, pois é mais um desses em que Alma parece estar se despedindo, mas a pedir desculpas àqueles que ela achava ter magoado ou feito sofrer de alguma forma. Ela talvez não soubesse que todos nós a venerávamos e nos preocupávamos com ela por excesso de amor e admiração. (Lúcia Welt)


A previsão da Mutti (de Alma Welt)

(166)

Pela estrada que leva ao casarão
Eu galopei desde guria no alazão,
E ver-me com a cabeleira ao vento
Sem sela e afogueada era um tormento

Para a minha Mutti que cobrava
De mim desde criança uma postura
De prenda recatada e nada "brava",
Pois achava que a vida de aventura

Me levaria para longe dos normais,
E que assim eu não me casaria
E ficaria fatalmente "pra titia".

E vejo agora suas previsões fatais
Se confirmarem, pois pra mim não haveria
Outro caminho... que o vento e a Poesia.

27/12/2006

Onde estarão (de Alma Welt)

(165)

Onde estará a minha irmã Solange
Que na morte perdoei e perdoou
Esta em cujos braços se encontrou
Na agonia que ainda me confrange?*

Onde estará o bêbado Alberto
Que foi o seu marido abandonado,
Que a parede da cave tendo aberto,
Me salvou, embora o tenha carregado?*

E a Mutti, que tanto quis mudar-me
Que tanta vez exagerou na sua varinha
De marmelo, e cansou de fustigar-me?

Certamente num lugar do coração
Dentro deste mais pobre casarão
Mas cuja sombra não lhes será mesquinha...

14/01/2007

Nota de editora:

Nossa irmã Solange foi assassinada por meu ex-marido Geraldo com quem estava vivendo, depois de se apossarem da herança deixada por nossos avós, e encontrada por Alberto e por Alma, na forma de uma safra de dez mil garrafas de excelente vinho tinto de 1962, depositados em estantes numa imensa adega secreta desconhecida de todos nós debaixo do casarão, e que tinha sido antiga senzala.Alma foi encerrada dentro dessa adega por Solange que era sua inimiga desde a infância. Alberto, o marido abandonado de Solange, talvez pelo seu faro de alcoólatra fora o primeiro a descobrir a adega e o segredo de sua parede rotatória secreta, salvou Alma quando esta já estava desmaiada de terror, praticamente enterrada viva em completa escuridão.No meio desses horrores, há um detalhe de humor citado por Alma no soneto: ela acabou tendo que carregar o seu salvador, de tão bêbado que estava. Isso tudo está contado num capítulo do romance autobiográfico da Alma, A Herança, do qual ela publicou alguns outros trechos (vide as páginas dela no site Leia livro) e no outro blog que abri para a sua obra: almaweltprosa.blogspot.com
(Lúcia Welt)


Antípodas (de Alma Welt)

(164)

Juventude, o quanto hei de querer-te
Por uma vida inteira de memórias,
Mas eu pensar em ti já como estórias
É sinal de que logo vou perder-te!

Transformei cada minuto em puro verso
E em crônica o corriqueiro lance,
Um outro em episódio controverso,
E a breve temporada num romance.

Eis o que tem sido o bem e o mal:
Viver a vida sem sair deste local
E conhecer os polos mais extremos

Vivendo entre a estróina e a asceta,
Ser tanto sibarita quão profeta,
A gulosa e o cadáver que seremos...

17/11/2006

Nota da editora:

Considero este um dos mais notáveis sonetos da fase final da Alma, encontrados no caderno recém-descobeto por mim na arca de inéditos da Alma, no sotão contiguo à "mansarda" de Rôdo, aqui no casarão. Este soneto é um exemplo da veia metafísica da Alma, que não obstante a sensualidade e erotismo que a fizeram vítima de malentendidos, perpassa toda a sua obra viceral e profunda.


A Abantesma (de Alma Welt)

(163)

Ó casarão da minha infância
E que me verá adormecida
No último sono, já sem vida,
Para ser a abantesma desta estância,

Por aqui onde vivi a fantasia
De ser mulher-poema e musa errante
Do meu bosque, do jardim, da pradaria
E de todo o meu pampa circundante

E quando estiver morta, que me vejam
A galopar sob o céu da Branca Via
Nua como em vida já se ouvia

Ou mesmo que não muito créus estejam,
Afirmem pra seus piás e filhas:
"Alma vagou esta noite nas coxilhas!"

18/01/2007

Nota da editora:

Fiquei pasma com este belíssimo soneto, e o achei profético, pois é realmente o que tem acontecido por aqui: Alma tem sido vista pelos peões e suas mulheres e filhas, tanto quanto por mim, acreditem vocês ou não. Seu espectro muito branco, translúcido, vaga pelo jardim, pelo pomar e pelas colinas, perdendo-se no bosque. Eu já o segui três vezes, e numa delas encontrei na praia da cascata, brilhando á luz da lua, o anel de prata de lenço de vaqueiro que serviu para a identificação de seu assassino. Mas isto é uma penosa história que fico devendo e contarei mais tarde aqui mesmo neste blog. (Lucia Welt)

Compensação (de Alma Welt)

(162)

Meus amados sobrinhos me procuram
A todo instante segurando minha mão
E beijam-me mostrando que perduram
Os sentimentos que plantei no coração

Deles quando ainda não andavam
E beijava-os como se a mãe fosse eu,
Que assim, na verdade, me encantavam
Como saídos deste seio ou ventre meu

Que ninguém ouse chamar de ressequido
Pois deu-me um filho que perdi
E que por medo, eu sei, não repeti

Pois a perda perdura e não tem fim,
A não ser num olhar de querubim
Que vejo nesses olhos tão queridos...

05/12/2006

Alma realmente teve um filho que perdeu com um mês e 20 dias, vitima da síndrome da "morte no berço", caracterizada por um defeito respiratório de nascença. Era fruto de sua relação com Gino, violinista e luterista(vide a novela Narciso, no Leia Livro). Essa tragédia quase matou a Alma de dor, e deixou-lhe profunda seqüela emocional. Chegamos a pensar que ela estivesse na raíz de seu suicídio, quando ainda pensávamos ser a causa de sua morte misteriosa que abalou a todos nós, de maneira profunda e traumática.


Doce filosofia (de Alma Welt)

(161)

Amores, devaneio, sonho vário
São esses os meus ingredientes
Pra uma vida plena entre as gentes,
Embora me afirmem o contrário.

Há quem queira que pro dever vivamos
(Minha Mutti era a rainha da corrente
Que meu pai denominava docemente
De "estóica", dos ferozes espartanos).

Mas quem a dura Natureza premiou
Como os dons da beleza e da poesia
Porque houvera de punir o que louvou?

Sentir com volúpia ah! meus desejos,
E do amado os mais sutis ensejos,
Abandonar meu corpo à fantasia...

11/11/2006

Meu segredo (de Alma Welt)

(160)

No poço da minha cascatinha
Eu desde guria nua me banhei
Em volúpia, e nem sequer olhei
Pra certificar-me estar sozinha.

Então uma bela tarde aconteceu
Do meu vestido branco ser roubado
Por alguém talvez muito engraçado
Ou que queria possuir algo de meu.

E eis que fui pelada até o vinhedo
Pra colher quatro folhas, que ostentava
Crendo assim ocultar o meu segredo

Que era a nudez total, primeva,
Pois o falso pudor me preservava
Como já o fizera à pobre Eva...

07/01/2007


Muito voei (de Alma Welt)

(159)

Muito voei até extremos planos
Onde o Chuí desliza até o mar
E começam os pagos castelhanos
Em que quisera um dia me exilar

Quando de mim levaram meu irmão
Para longe da irmã e desta estância,
E quando truncaram minha infância
Por acharem que cabia punição

Àquele amor feliz e apaixonado
De duas crianças que se acharam
No mundo como um só ser apartado.

E agora faltava o outro lado,
Sempre, que no meio me racharam,
A procurar dentro de mim o ser amado...

13/01/2007

A Prece da Alma (de Alma Welt)

(158)

Pelas coxilhas batidas pelo vento
Eu gostava de estar correndo ao léu
Com os cabelos soltos sob o céu
Pra qu'Ele visse meu contentamento.

E eu pensava, juro, e não mentia:
"Nada mais peço, Senhor, eu te prometo,
Só me concede voar no meu soneto
Como vôo aqui na pradaria!"

"Toma meu rosto, Senhor, que esmeraste,
E esta alvura que o peão reverencia,
E que com meus cabelos faz contraste

Cujo rubro rastro semeaste
De olhares e de vã idolatria...
Senhor, só não me tires a Poesia!"

12/01/2007

Nota da editora:

Este é, a meu ver, um dos mais belos sonetos que já li de minha irmã. Até eu estou surpresa com a quantidade de obras-primas contidas neste caderno de inéditos da Alma, que recém-descobri. O espírito religioso da doce Alma, que costumava dizer que era uma pagã povoada de deuses, se revela de maneira comovente nesta verdadeira prece de poeta. (Lucia Welt)
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21/08/2007
A pena do perdigão (de Alma Welt)

(158)

"Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha." (Luiz Vaz de Camões)


Um dia, colhendo na campina
As flores pra fazer lindo buquê
Eu vi no ar uma ave de rapina
Que vinha descendo num piquê

E parecia vir em minha direção
Mas virei-me para logo ver o alvo:
Um velho triste e cansado perdigão
De perdida pena e meio calvo.

E lembrei-me do soneto de Camões,
Inteiro, antes de vê-lo apanhado
Pois não pude salvar o desasado

Pois que quando o coração já sossobrou
Estamos à mercê dos gaviões
Que virão buscar o que sobrou...

15/01/2007

Nota da editora:

Este curioso e pouco citado poema auto-satírico de Camões, escrito a partir de um mote maldoso que lhe lançaram (ele andava sendo apelidado na côrte, de "perdigão", a ave de vôo curto) num momento de profunda dor e decepção amorosa, tem sua primeira quadra assim:

"Perdigão perdeu a pena" (o mote)
Não há mal que lhe não venha.

Quis subir a alta torre
Mas achou-se desasado
E se vendo depenado
De puro penado morre...

Perdigão perdeu a pena
não há mal que lhe não venha.

.........................
Alma era profunda admiradora de Camões,
que ela considerava o seu mestre direto no soneto
(Lucia Welt)


O retorno (de Alma Welt)

(157)

Nestes dias frios do meu Sul
Eu saio com meu poncho e chimarrão
Para andar a esmo sob o azul
Sem manchas do imenso pavilhão

Que é o céu profundo deste pampa
Que à noite a miríade estampa
Das estrelas do Lácteo Caminho
Por onde ainda anda o meu Negrinho

Do Pastoreio, sim, meu padroeiro
Que me fez encontrar o lar, porfim,
Quando estava perdida no estrangeiro,

Exilada do meu Pampa adorado,
Ansiando sob um céu acinzentado
Por minha casa, o pomar e o jardim...

15/06/2006

Palavras à Matilde (de Alma Welt)

(156)

Matilde, me prepara aquele mate
Que hoje não levanto do meu leito!
Acordei com aquela dor no peito
Causada pela falta do meu Vati.

Não quero escrever e nem pintar,
E muito menos, como dizes, trabalhar,
Já que não dás valor à minha arte
E vives a dizer que vivo à parte

Longe das coisas deste mundo
Que pra ti é somente o dia-a-dia,
Os trabalhos e os deveres, sem poesia...

Mas então, Matilde, tu não vês
Que o soneto é meu labor profundo
A espelhar o mundo que Deus fez?

28/11/2006

A dama da geada (de Alma Welt)

(155)

Esta noite caiu grande geada
Num amanhecer quase europeu,
E vi a pradaria esbranquiçada
Como se fora neve e como eu

Que saí pela campina e evaneci.
"Branca sobre branco" diz Galdério,
Que rindo quis dizer que me perdi,
Pois que não me leva muito a sério.

Mas respondi no mesmo diapasão:
"Não me viste, ó peão, a cabeleira
Vermelha, produzindo aquela esteira

De cometa fiel nas pradarias?
Era eu, e por certo não sabias
Que era mulher, estrela-guia de peão..."

12/07/2006

Nota da editora:

Os leitores que me perdoem se me acham supeita, como irmã da poetisa, para emitir um juizo como este: creio que estou diante de uma obra-prima do soneto universal, em que pese o sabor regionalista típico da Alma nesta sua fase pampiana.



O Território Mágico (de Alma Welt)

(154)

Por uma senda do Pampa, invisível
Caminha o rebanho encantado
Para o território demarcado
Das Missões, onde o Sul é imperecível.

Ali, de noite, reunem-se os peões
Com suas bombachas, esporas e tacões;
As lanças farroupilhas ainda açulam
Imperiais que no sonho capitulam.

Anita é avistada, ah! tão bela!
E o bravo Giusepe se revela
O amante fiel e apaixonado

Que retorna ao Sul com sua nave
Para buscar do amor a própria chave
Que restou perdida neste prado...

15/01/2006

Nota da editora:

Diante de belezas como esta que constam do caderno recém-descoberto da Alma, eu vejo que a sua intenção inicial de fechar os Sonetos Pampianos em 150 estava superada por ela e que apenas não teve tempo de colocar a série completa, que parece infinita. Assim vou publicá-los à medida que os for encontrando com estas características.
(Lucia Welt)


Belas noites de verão... (de Alma Welt)


(153)

Belas noites de verão, no meu jardim
Dançavam fadas, luzes, pirilampos,
Estrelas magas vagavam pelos campos,
E as horas, propícias e sem fim.

E eu levantando do meu leito
Corria entre as sebes prateadas
Sentindo ser também uma das fadas
Com toda a Natureza no meu peito.

E leve, nua, eu como que voava,
O corpo ainda não se concentrava
Em si mesmo, inconsciente do seu pejo,

Eu só seria espírito e alegria
Se já não despontasse a nostalgia
Da futura antiga Alma e seu desejo...

26/11/2006

Nota da editora;

Os sonetos encontrados postumamente num caderno da Alma, me encantaram pela excepcional beleza e não consigo comprender por quê minha irmã não os publicou no seu site, no Recanto ou no Leia Livro na época mesma de sua feitura. Eles me parecem inclusive pertencer em espírito e gênero à série dos Sonetos Pampianos que ela fechou em 150.
Este que acabo de postar me parece campeão, pela sua delicadeza e achados poéticos. Reparem na sutileza de significado do último terceto.


A Tentação da Alma (de Alma Welt)

(152)

Uma vez estando eu a passear
Pela minha dourada pradaria,
Como de hábito imersa num cismar
Que me levava além da alegoria,

Onde coisas, numes, deuses, tudo junto
Cercava-me e querendo-me com eles,
Eu encontrei um tal Mefistofeles
Que não fazia parte do conjunto,

E este rogou-me desnudar-me
Que queria que queria admirar-me
Prometendo-me tesouro todo à parte.

E eu que não me faço de rogada
Fiquei nuínha, e sim, sem querer nada,
Disse: "Eu mesma sou o Ouro e a Arte!

03/12/2006

Nota da editora:

Fiquei encantada com a descoberta desta jóia, que deveria fazer, a meu ver, parte dos "Sonetos Pampianos da Alma". Reconheço tanto a minha irmã neste soneto, que derramei lágrimas de saudade e emoção. Alma era mesmo uma obra de arte viva, que transcendia a nossa condição cotidiana, pois vivia numa permanente dimensão poética corroborada pela sua excepcional beleza física tanto quanto anímica. Por isso tudo o que ela conta nos seus poemas, textos e sonetos, podem ser lidos e vistos como expressão de uma verdade palpável para ela, que costumava afirmar não inventar nada, mas sim contar sua vida, suas visões e seus sonhos que se apresentavam vivos e reais para ela. Tenho muitos motivos e exemplos para não duvidar que Mefisto apareceu mesmo na pradaria tentando-a, e ela agiu e respondeu como contou no soneto.(Lucia Welt)



No Labirinto da Frida (de Alma Welt)

(151)

No jardim da minha avó, um labirinto
Foi plantado por ela, eu o sinto,
Embora há quem o diga mais antigo
E que nisso consiste o seu perigo.

No seu centro toda imagem desvanece
Ou talvez encontre o Minotauro,
Pois parado ali o tempo permanece
Sem passado, sem futuro, sem restauro.

Conquanto fui guria até segura
Sempre passei-lhe ao largo com respeito
Pois prezo demais a minha figura.

Creio, no jardim da velha Frida
Mora o segredo, a causa e o efeito
Do amor e da poesia em minha vida...


05/12/2006

O último concerto (de Alma Welt)

(150)

Venham memórias e tragam os amores
Que esta noite entretê-los-ei porfim
No jardim noturno em meio às flores
Sob a lua, como gotas de marfim

Entre coruscantes vagalumes
Num concerto de câmera perfeito
No qual regerei meu coro eleito
De fadas, elfos, ninfas e alguns numes.

Não faltará a voz de sopranino
Do meu Negrinho em Pastoreio
Perpétuo com seus lumes de menino

A perseguir o novilho tão bisonho
Que desgarrado vai como um ponteio
A vagar pelas sendas do meu sonho...

17/01/2007


Adeus Pampa (de Alma Welt)


(149)

Adeus Pampa, que a galope estou indo
Pra outros pagos, nua e sem a sela,
Escanchada sem pudores no meu pingo
Que como Eva sou sua costela

Antes da maçã e da serpente,
Infanta da Natura e sem pecado,
Alma pura, erótica e inocente,
A quem só amar foi destinado.

Esperem-me na Noite, ó desejosos!
Poetas, sonhadores de passagem,
Que sob suas cobertas liquefazem

Seus corpos, de graça e fina estampa,
Destilando seus fluidos licorosos
Pela Musa derradeira deste Pampa!

19/01/2007


Nota da editora:

Encontrei, emocionada, este belíssimo soneto, identificado com segurança como o penúltimo da série dos "150 Sonetos Pampianos", na montanha de papéis da Alma, que venho compilando e organizando. Percebe-se nele uma despedida, como se Alma soubesse que estava partindo para outro plano astral (outros pagos) como se estivesse simplesmente galopando rumo "austral", "muito ao sul de si mesma" (expressão dela numa crônica). Alma tinha consciência da sua natureza de Musa deste Pampa, pois foi, sem dúvida sua maior intérprete feminina, neste começo de século. (Lucia Welt)


A Infanta (de Alma Welt)

(148)

Muito viajei pelas cidades
Do mundo real e as da mente,
Europa e os reinos do Oriente
E os das lendas de antigas deidades.

Mas o Pampa, o Pampa é minha raíz...
Aqui vou mais longe ao galopar
E perco-me no mundo por um triz
E encontro meu espaço em pleno ar!

Bravos gáutchos* montados e em seus zelos
Tocam seus chapéus com os dois dedos
Ao verem-me correndo tão sem medos,

Infanta de meu reino, ou já rainha,
Meio louca, eu sei, soltos cabelos,
Mas ao passar saudada pela Vinha!

18/01/2007

Nota da editora:

* gáutchos- Fonético de "gauchos" sem acento, os gaúchos da fronteira já designados pela expressão castelhana.

Alma realmente galopava nua e sem sela, "escanchada" no seu "pingo", com os longos cabelos ruivos ao vento, quando sentia a pradaria deserta. Mas a verdade é que foi muitas vezes avistada nessas condições, e pela sua beleza não fora até então
desrespeitada, apenas tocavam seus chapéus, e estava virando uma lenda viva de cunho meio folclórico em nossa região. Agora que está morta, os peões continuam a vê-la assim, galopando, muito branca como sempre, mas agora espectral... e consideram-na uma visão auspiciosa.


A Saga da Alma (de Alma Welt)


(147)

No meio de esparso arvoredo
Se ergue a imensa alvenaria
Que foi um rincão de vacaria
Antes de ser a sede de um vinhedo.

Meu avô foi pioneiro co'esta vinha
Quando aqui chegou como um intruso,
Um boche, um godo, um abstruso
Com seus dois metros de gavinha

Que se agarrava a tudo pra subir
Ainda mais alto, eu suponho,
Para um perfeito vinho produzir...

E restou do que a terra traga,
Suores, sangue, risos, sonho:
Esta Alma pra cantar a sua saga.

16/01/2007
Postado por Lúcia Welt às 11:13 AM 0 comentários
14/08/2007
Lendas do meu bosque (de Alma Welt)

(146)

O meu bosque reserva o seu segredo
Para quem tem olhos e ouvidos,
Poucos, na verdade, os escolhidos
Capazes de adentrarem-no sem medo.

Principalmente quando no crepúsculo
Principiam as fantasmagorias
E aquele vago lusco-fusco
Produzido por ocultas fadarias.

"Nada de bosque!" alertava a Matilde
"Que ali o malígno espreita
Tanto guria nobre como humilde."

"Conheci uma que sumiu e não mais vi
Para me contar que coisa é feita
Com aquelas que se agacham pro xixi..."

15/01/2007


Eu e as fadas (de Alma Welt)

(145)

Guria, eu buscava no meu bosque
Não somente orquídeas e amoras,
Mas as fadas que dançavam suas horas
Numa espécie de minúsculo quiosque.

E eu as via, sim, e muitas vezes
Com elas conversei em língua estranha
Que aprendi e soube por uns meses
Antes de dar-me conta da façanha.

Pois quando pressionada por Solange,
Irmã que só tinha os pés na terra
(às vezes lembrar disso me confrange),

Revelei que era com elas que eu falava,
E num zás eu era alguém que se desterra,
E o portal das fadas se fechava...

11/01/2007


O reino da Alma (de Alma Welt)

(144)

Entre Rosário e Livramento
O reino desta Alma pampiana
Se estende muito além da Taprobana*
Onde o Preste João perdeu o jumento*,

Em meio às Bem-Aventuradas Ilhas*
Que no mar da pradaria são coxilhas
A terra de Cocaygne* ainda espera
Os aventureiros de outra Era*;

E o velho Cronos parado continua*
Na planície do Letes, vaga-mente*
Em que Ananke ainda conduz sua charrua*

Em torno ao casarão meio adernado
Que afunda comigo lentamente
Como insensata nau em meio ao prado...*

15/01/2007

Notas da editora:

Tive a grata surpresa de encontrar este soneto desconhecido, inédito, de minha irmã, pois não tinha sido publicado no Recanto onde ela fora postando dia a dia no seu último mês, a sua gloriosa série dos "150 Sonetos Pampianos". Encontrei esta folha em meio aos seus papéis como se ela o considerasse demasiado obscuro ou "iniciático" para ser dado a público. Resolvi então publicá-lo, pelo notável que é, com a ajuda de suas anotações e bibliografia, decifrando-o nestas notas.

*Muito além da Taprobana"- Citação do quarto verso da primeira estrofe ds Lusíadas de Camões que se refere a um limite náutico, depois desaparecido, onde começava a terra das Índias Orientais.

* Onde o Preste João perdeu o jumento" - Expressão criada por Alma, equivalente a "onde o Judas perdeu as botas", isto é, um pago ermo "no fim do mundo". O Preste João era um poderoso e riquíssimo rei cristão, mítico, que os navegadores da Renascença acreditavam reinar nas Índias Orientais ou na China, terras praticamente desconhecidas dos europeus (a não ser pelo veneziano Marco Polo cujas narrativas corroboravam esses mitos) e almejadas pelos aventureiros ávidos de riquezas.

* às Bem-Aventuradas Ilhas" - As Ilhas Bem-Aventuradas, era terras onde o tempo não existia e a juventude e a felicidade eram eternas, reservadas para os heróis da antiga Grécia, da Idade de Ouro.

*...terra de Cocaygne" - Outro mito ou utopia da Renascença, terra encontrada por acaso e novamente perdida por navegadores, espécie de paraíso terrestre onde a vida era fácil e os alimentos eram colhidos nas árvores, inclusive os frangos e os leitões assados (risos). (Vide o quadro homônimo de Pieter Bruegel).

* O velho Cronos parado continua" - Com esse verso Alma quis dizer que o tempo continua parado nesta porção do pampa, onde se encontra a nossa estância, o que até certo ponto é verdade, embora Alma e eu tenhamos descoberto o computador e os sites literários que nos permitem publicar instantaneamente o nosso pensamento e ouvir a opinião dos leitores.

* ..."a planície do Letes, vaga-mente" - Descrita por Platão, no chamado "Mito de Er, o Armênio", no final da República, esse mito órfico, se refere a planície onde corre o rio Letes, o "rio do esquecimento" (dele deriva a paravra letal, e letargia, sono letárgico) e onde as almas que o atravessavam em cortejo guiadas por hierofantes, eram obrigadas a beber apagando ("vaga-mente") assim a memória de sua vida (encarnação) passada.
Nessa planície se encontrava a coluna de luz ligando o céu e a terra, onde girava o fuso do destino humano, nos joelhos de Ananke, a Necessidade. Esse mito de profundo esoterismo, confirma a hipótese de que Platão era um órfico tardio, isto é, um iniciado do Orfismo, quer dizer, da doutrina órfico-pitagórica, ligada aos Mistérios de Elêusis, e cuja origem era anterior ao século VII AC.

No prefácio de Victor Hugo ao seu romance "Os Trabalhadotes do Mar, ele começa dizendo: "Tríplice ananque pesa sobre nós) ... "são três necessidades suas"... (o homem) precisa comer daí a charrua(arado) e o navio) (símbolos do "ananque das coisas", a luta pela sobrevivência material). "Nasce deles (desses ananques) a misteriosa dificuldade da vida." (Victor Hugo)

"... insensata nau em meio ao prado"- Alma compara o casarão à "nau dos insensatos", um grande barco ou navio de madeira, onde na Idade Média eram colocados os loucos para segregá-los do convívio dos "sãos" das aldeias e dos campos, e que ficava descendo o rio à deriva, até afundar pelo caos reinante a bordo, já que o capitão era escolhido entre os loucos, tal como na nossa sociedade. (Lucia Welt)




Da invocação mágica da Alma (de Alma Welt)


(143)

Minha árvore sagrada do Destino,
Ó macieira das vidas ancestrais*
De que foram revelados os anais
Em noites de aparente desatino!

Aqui eu invoquei deuses pagãos
Como de um carvalho a druidisa*
Ou como a última papisa*,
Segredo de uma estirpe de cristãos...

Numa noite prateada os invoquei
E vieram os do Olimpo e os de Odin*
E tantos, que, confusa, desmaiei.

Até que meu irmão, o vigilante*,
Correndo me ancorou naquele instante,*
Pois que pairava sobre os talos do capim!

15/01/2007

Notas da editora:

*... "macieira das vidas ancestrais"- Alma cultuava a velha macieira do nosso pomar, que ela chamava de ARA, que ao mesmo tempo que significa altar, é a sigla de Alma, Rodo e Aline, iniciais gravadas a canivete, em sua infância (primeiramente AR, Alma e Rôdo) num coração, em seu tronco. Alma acreditava que nas suas invocações mágicas diante da macieira suas encarnações passadas lhe foram sendo reveladas.

* ..."Como de um carvalho a druidisa"- Os druidas, espécie de sacerdotes-magos celtas, cultuavam os carvalhos sagrados, diante ds quais faziam seus rituais e dos quais colhiam o "visgo" para fazer uma poção poderosa, colhendo-o com a foice de ouro.
*... "última papisa" - Alma parece se referir a uma outra papisa (um papa mulher) que teria vindo depois da célebre e meio mítica Papisa Joana, que o Vaticano insiste em negar a existência, embora haja evidências históricas. Alma tinha motivos para acreditar que uma seita secreta de cristãos cultuam até hoje essas "papisas", sendo a última um mistério maior ainda que a primeira.

*..."os do Olimpo e os de Odin"- Nosso Vati (papai) criou Alma como uma pequena pagã, com a mente povoada de deuses: os do Olimpo grego, e os do Walhala germânico, do qual Odin era o maior deus guerreiro. Dos numes propriamente pampianos, Alma elegeu por sua conta, o gaúcho do mito da Salamanca do Jarau, o "gaucho" castelhano Martim Fierro, o estabanado Rodrigo Cambará, do Tempo e o Vento do grande Érico Veríssimo, e o Negrinho do Pastoreio, que ela considerava seu pequeno padroeiro na pradaria.

* meu irmão, o vigilante"- Rôdo, nosso irmão caçula, tinha (e tem) por Alma uma tal veneração, que na infância e adolescência estava sempre atento e vigilante para tirá-la de apuros, já que ela era muito afoita e aventureira.

*"Correndo me ancorou ..."- Alma conta esse episódio da "Noite prateada"( noite de verão), em seu grande romance biográfico e confessional, A Herança. Nesta passagem do primeiro capítulo, Alma conta que frente à Ara, no pomar, no meio da invocação que ela fez de todo os deuses, tendo eles aparecido, todos, de roldão e num grande tumulto, ela desmaiou e ficou pairando, em levitação, inconsciente, a dois palmos do solo(acima dos "talos do capim" ) até que Rôdo que a procurava gritando o seu nome a encontrou nesse espantoso estado, e a "ancorou" isto é, teve que empurrá-la suavemente para baixo para que pousasse na relva. (Lucia Welt)



Nightmares (de Alma Welt)

(142)

Mal deito-me de noite no meu leito
Começo a caminhar no labirinto,
Que é este casarão dentro do peito
Com os seus fantasmas de absinto:

O espectro gargalhante de minha avó
Frida, velha bruxa feiticeira,
Joachim, meu avô se ergue do pó
E me cobra ser também uma guerreira,

A Walkíria que ele espera, ai de mim!
Que ando com medo da minha sombra,
Na fatal condenação talvez sem fim,

Ao vê-la c'uma corda no pescoço*,
Que temo ou pressinto e que me assombra
Fazendo-me acordar em alvoroço...

17/01/2007

Nota da editora:

*"fantasmas de absinto"- esta notável imagem criada por Alma deve ter nascido da demonstração de nosso pai, o Vati, que um dia ilustrou para nós, dramaticamente, a forma com que tantos poetas e pintores se destruiram nos cafés de Paris no fim do século retrazado. Ao preparar o absinto numa taça especial, na mistura que se fazia necessária o líquido ficava sinistramente esbranquiçado, e com um aspecto fantasmagórico.

* " ... c'uma corda no pescoço"- Este verso me assombrou, pois mostra que a Alma anteviu a forma com que iria morrer, projetada como sua sombra na parede, em seu pesadelo. Agora que sabemos não ter sido suicídio, mais nos confrange e dói, por sabê-la temerosa, sofrendo sua morte violenta como visão ou pressentimento, ela, que entre tantos dons tinha também, e infelizmente, o da vidência. (Lucia Welt)



O volátil real (de Alma Welt)

(141)

Estou correndo o risco de viver
A vida de soneto em soneto
Pois somente neles posso ver
A mim e meus fantasmas, como um gueto.

Tenho em volta a mim tanta beleza,
Este pampa, a pradaria, os animais,
E já não consigo ter certeza
Se são apenas versos ou reais.

Está faltando o senso do palpável,
Ou da tênue fronteira do real,
E temo já nem parecer saudável

Pois sinto que me olham já de esguelha,
E faço com o Rôdo uma parelha
De irmãos siameses do Nepal...*

19/01/2007


Nota da editora:

"irmãos siameses do Nepal"- Com esse estranho verso, não sem um certo humor Alma sugere o absurdo ou a estranheza de sua simbiose anímica com nosso irmão Rôdo, inseparáveis que eram desde a infância, apezar de Rôdo viajar bastante pelo mundo, como jogador quase profissional de pôquer.

Sonetos como este, levaram os médicos que conheceram Alma, como a excelente médica sueca doutora Jensen, que a conheceu na Clínica em 2005 e vinha tratando dela desde então, a acreditar numa "progressiva psicose de tipo esquizóide" (eufemismo para esquisofrenia), que fazia a Alma perder o senso de realidade e não distinguir mais sua poesia da realidade circundante. Mas, eu pergunto, não é assim toda a grande Arte? Novalis já tinha dito: "A Poesia é o autêntico real absoluto. Quanto mais poético mais verdadeiro." Alma era como alguns poucos poetas da história que viviam numa permanente dimensão poética. Seria isso que, afinal, custou-lhe a vida? (Lucia Welt)



Amanhecer no Pampa (de Alma Welt)

(140)

Ao amanhecer nos nossos pampas
Eu vejo a cada dia maravilhas:
A planície erguer suaves rampas
Para o sol, dizendo-se coxilhas,

E toda ela altear-se conclamando
Com sua relva florecente os insetos
À luz abençoada e exclamando
Na forma de seus cânticos seletos.

E vejo que o Deus destas paragens
Está a enviar as suas mensagens
Nesta forma mesma de desvelos

E de pássaros, aragem, leve brisa
Brincalhona, carinhosa, que deslisa
Pelas minhas faces e cabelos...

17/01/2007



Lamúrias da Alma (de Alma Welt)

(139)

Meus leitores me queriam consolada
De ser assim, como uma louca a vagar,
Lida por tantos, por vezes incensada,
Deveria ou poderia me queixar?

Não, eu sei, não passa de uma falha
De caráter do ser dúbio que me fiz,
Que "por dá cá aquela palha"*
Me sinto rejeitada e infeliz.

Mas é que antes de poeta, sou mulher
E, ai! tão carente de carinhos,
Procurando carícias onde quer

Que eu esteja, como os filhotinhos
Da minha cadela agora tão risonha...
Bah! Devo calar-me, que vergonha!

18/01/2007

Nota da editora:

* "por dá cá aquela palha"- expressão arcaica, tipicamente lusa, só possível de aparecer na poesia de uma guria de muita convivência com a literatura portuguesa ou brasileira do século dezenove. A propósito, Alma mesmo sendo ainda jovem tinha por incentivo de nosso pai e por natural pendor, adquirido uma espantosa cultura literária, às raias da erudição. Me admira, inclusive, que tendo lido tanto, inclusive de noite, Alma nunca tenha precisado de óculos e tenha mantido sua beleza.
Neste poema vejo também uma dose de humor que a Alma não perdia mesmo nos seus momentos de aflição.

Alma nestes seus últimos dias procurava razões para sua angústia, solidão e inquietude que ela confundia com carência. Presumo que minha irmã, na verdade presentia sua morte iminente, que ocorreria dali a quarenta e oito horas deste soneto. Entretanto, nós, sua família sabemos agora que Alma não se matou, foi assassinada. Sempre tive dúvidas quanto ao que realmente tinha acontecido. Há quatro meses a polícia começou uma investigação aqui na estância, que resultou na prisão do assassino, que já confessou. Daqui há poucos dias haverá a reconstituição do crime no local do ocorrido, nosso poço da cascata. Estamos diante de um novo tormento, embora o esclarecimento da tragédia (tão grande quanto...) tenha confirmado a luz e visão positiva que sempre vi na vida e na obra da grande poetisa e humanista que foi a amada Alma. (Lucia Welt)


Um sonho da Alma (de Alma Welt)

(138)

Decidi ser mãe mais uma vez
(há muito perdi uma criança...)
Nem que tenha que laçar como uma rês
Um peão, um macho, aqui na estância.

Mas caí na esparrela de contar
Meu plano para a pobre da Matilde,
Que só faltou com uma vara me açoitar,
Dizendo: " Bah! Como a rainha é humilde!"

"Mas não podes, tu tens que respeitar-te!
Não vás deitando com qualquer gaudério
Que podes com certeza machucar-te..."

"E depois, como livrar-te do infeliz,
Que deitar-te contigo, quem não quis?
E já temos alguns no cemitério!"

19/01/2007

Nota da editora:

*"... perdi uma criança"- Alma teve um filho de um violinista com quem viveu quando morou em São Paulo. Essa história ela contou na sua novela Narciso, de uma "Trilogia Mítica", que foi publicada por ela no site Leia Livro(ainda está lá).Essa criança, lamentavelmente, com pouco mais de um mês, por síndrome da morte no berço, isto é um defeito respiratório de nascença. Como podem imaginar, Alma sofreu muito, e o fato deixou-lhe um vazio por dentro, que ela não conseguia prencher, mesmo tendo uma vida interior tão rica.
Por esse motivo, nós nos precipitamos em acreditar que ela pudesse ter se suicidado, diante das circunstâncias misteriosas de sua morte. Todavia uma dose de estranheza e de violência inusitada nas circunstâncias em que seu corpo foi encontrado fez nascer dúvidas em várias pessoas, o que motivou uma investigação quase particular, a princípio extra-judicial, por parte de um delegado que a conhecera em Rosário do Sul, e que tinha estudado com ela num ginásio daquela cidade. ( Lucia Welt)


De reinos e condados (de Alma Welt)

(137)

O meu bosque é um mundo insuspeitado
Que tenho ao meu dispor desde guria,
Com as lições matinais da cotovia,
Embora ela não seja do condado.

O rouxinol, também, anoitecendo
Eu ouço na memória ancestral,
Tão européia, eu sei, e espectral,
Esta mente com que tanto condescendo.

Pois meu Vati sustentava as minhas horas
No bosque buscando o cogumelo,
Para voltar somente com as amoras...

E eu sabia que ele garantia
A minha alma ansiosa pelo belo
Que os tempos e os reinos confundia.

12/01/2007

Nota da editora:

Alma foi criada no meio dos livros, praticamente dentro da biblioteca clássica de nosso pai, o Vati (papai, em alemão). A cultura européia povoava o seu mundo interior que no entanto tinha raízes no pampa que a circundava. Neste soneto ela faz alusão à cotovia e a ao rouxinol, aves européias inexistentes no nosso Pampa (e no Brasil em geral) provavelmente por causa da famosa cena do Romeu e Julieta de Shakespeare. Também os cogumelos e as amoras representam essa polarização Europa-Brasil, que ela conciliava como cenários: imaginário e real, dentro de si. (Lucia Welt)



A princesa em farrapos (de Alma Welt)

(136)

Havia um peão na minha infância
Que me salvou de pequena enrascada:
Eu fora atravessar com muita ânsia
Uma cerca e fiquei toda enroscada.

Meu vestidinho enganchou-se no arame,
E quanto mais aflita, mais vexame.
Até que o peão chegou solícito
Com um carinho sério, mas implícito.

E ficando meu vestido em farrapos
Fui trazida em seu cavalo qual princesa
Que tivesse se perdido na floresta.

Mas chegando ao casarão levei sopapos
De minha mãe, a rainha da dureza,
Eu que esperava (e ainda espero) aquela festa...

12/01/2007

Nota da editora:

Me lembro bem deste episódio. Era dia do aniversário da Alma, e ela tinha ganho um vestidinho novo da Mutti. Estava toda faceira vestida com ele desde a manhã daquele dia, mas, amorosa, ao ver um potrinho quiz abraçá-lo, e ao tentar atravessar a cerca de arame farpado ocorreu o narrado no soneto. Chegou realmente em farrapos, chorando nos braços do peão (Rôdo ainda exclamou brincando: "Bah! Mire a princesa farroupilha! Cadê o Garibaldi?"), e nossa mãe, exasperada ao ver o estado do vestido, deu-lhe um tapa. Muito sensível, aquilo estragou a festa de aniversário que preparamos para ela.(Lucia Welt)


Debaixo da macieira (de Alma Welt)

(135)

Debaixo da minha macieira,
Por sagrada que é, fui desnudada.
Pela primeira vez a gurizada
Podia ver a guria nua inteira.

Então um guri, quase um piá,
Apontou-me o dedo ao baixo-ventre
(esse guri até ontem vi por cá ):
"É isto que tu vai dar pra gente?"

"É tão pequena, um risquinho, sem pipi!
Bah! Não vale a pena, dou desconto,
Mas te quero ver fazer xixi."

E foi então que em leve desaponto
Sem agachar-me urinei-me pela perna
Para uma platéia atenta e... terna.

17/01/2007

Nota de editora:

Este episódio humorístico da infância da Alma ocorreu mesmo, de verdade, como tudo o que a poetisa conta na sua qualidade de grande confessional. Mas reparem que sob o ternamente patético, há sempre uma dose de simbolismo arquetípico em tudo o que a Alma conta de sua infância. Sua macieira "sagrada", que ainda está lá no nosso pomar (o Jardim do Éden), era para ela a árvore da inocência nunca perdida, para além do bem do mal, a árvore da eterna infância.


Minhas vidas (de Alma Welt)

(134)

Tenho certeza de que um dia voltarei
Assim como voltei já muitas vezes
No corpo de mulheres e de um rei
Que não perdeu seu trono mas as rezes*.

Fui poeta, pintora e não matrona
Mas me orgulho mesmo da D’Affry*,
Adèle, a Castiglione, a Colonna
Que descobri ao ver a sua Pithie*.

Mas no século das luzes e “de Ouro”*
Fui princesa com retrato no castelo
Pintada tão real e sem desdouro

Que tive o meu “portrait” então roubado
Por um Feig que embora também belo,
Soldado, desertor e desastrado.

17/01/2007

Notas da editora:

*"rei que não perdeu seu trono, mas as rezes"- Presumo que Alma se refere a Odisseu (ou Ulisses) que teve seu rebanho devorado em banquetes durante dez anos pelos pretendentes à mão de sua esposa e ao seu trono (Odisséia, de Homero). Por alguma razão Alma o considerava uma de suas encarnações.

*Adèle D'Affry, duquesa Castiglione-Collona, a maior escultora do século XIX, que assinava "Marcello" era uma beldade, nobre, rica, jovem e talentosa era amiga de Delacroix, de Gounod e fez o busto de Lizt. Freqüentava a corte de NapoleãoIII, era amiga da rainha Carlota. Esta suposta encarnação da Alma é o tema da misteriosa novela Perséfone (da Trilogia Mítica), de Alma Welt (o primeiro capítulo entitula-se Marcello) que está publicada nas suas páginas no Leia Livro.

* Pithie- Pronuncia-se "Pissí" que no soneto rima com D'Affry, significa Pítia ou Pitonisa, é a escultura mais famosa de Adèle (Marcello), e que está num nicho do "grand foyer" do Opèra de Paris desde que foi adquirido para essa finalidade no Salon de 1870 por Jules Garnier, o arquiteto construtor do Opèra.

* "século da luzes e de Ouro"- o século XVII. A estória dessa encarnaçãoda Alma como princesa, e sobretudo as aventuras do Feig (encarnação germânica, passada, do Guilherme de Faria, artista contemporâneo que descobriu Alma como escritora, está contada no conto criptológico entitulado "Anagramas" que está publicado no Leia Livro, e que conta como os dois se conheceram nos séculos XVII e XX. Através de seis anagramas consecutivos e perfeitos Alma desvenda um sonho-reminicência do Guilherme que explica as circunstâncias do primeiro encontro dos dois através do retrato pintado da Alma. Contudo, curiosamente,apesar de seu prodigioso dom de anagramista, Alma não revela ou não descobriu o seu próprio nome como princesa naquela época e mais dados sobre si mesma além do retrato.Mas o conto contém uma verdadeira saga vivida pelo Feig (Thomas Feig) a partir do seu furto do retrato da princesa no castelo onde fora sentinela.



Uma outra infância (de Alma Welt)

(133)

Em recentes noites desta estância,
Eu reconheço comecei a sentir medo,
Coisa que não tive em minha infância
A menos que isso seja engano ledo:

Me lembro de sair sem outros lumes,
Do meu leito para ir até o jardim
Para sentir o perfume do jasmim,
Nua a vagar com os vagalumes.

Agora, envergonhada eu confesso
Que, assustada acordo e me apresso
Em camisola ir ao quarto da babá,

Minha Matilde velha que me abraça
Sob as cobertas furadas pela traça,
E que me esperavam desde lá...

17/01/2007


Nota da editora:

Alma pressentia talvez a proximidade da morte. Ela que era tão corajosa, fragilizou-se nos seus últimos dias. Me lembro como ela andava emocionada o tempo todo, derramava lágrimas e abraçava a todos a todo momento, o que nos comovia sem entendermos. Daí a dois dias escreveria o seu último soneto, "A carruagem".



Poesia, essência da alma (de Alma Welt)


(132)

Inteligência unida a uma virtude
É a fórmula ideal de um bem-viver,
E mais, a de uma bela completude
Para um bom poeta ver nascer.

Há quem ache que a Poesia é coisa vã
Ou matéria periférica e específica
De um gosto ou de tendência à metafísica
E que é melhor evitá-la gente sã.

Mas não vêem ou não sabem esses incultos
Que ela é a própria dádiva do ser,
Até daqueles seres mais estultos?

Não há como fugirmos dessa Musa,
Ela está em tudo, ela é difusa
E sua essência é o contrário do morrer.

19/01/2007

A verdade irredutível do ser (de Alma Welt)

(131)

Às vezes penso que fui longe demais
Em contar tudo, tudo o que me vem
Na mente, na vida, e muito mais,
Porque sempre se pode ir além...

Pois tudo o que dizemos nos pertence,
Sai de dentro do ser e é verdade,
Não há como dizer "isto me vence",
É tudo parte da nossa liberdade

De optar, apreender, reter, assimilar,
Que de nossa escolha nasce e raia
O ser que, construído, vamos dar

Ao mundo, ao outro, a quem se importe,
Àqueles a quem formos dar à praia
Como náufragos que somos para a Morte...

13/01/2007


A saga do corpo e coração ( de Alma Welt)

(130)

A razão de ser é mesmo amar.
O resto é só pra manter vivo
O corpo em sua agonia milenar
E nele a alma e o coração cativo.

Esta carne luta pra fundir-se
Tanto quanto a alma em sua ânsia
De com outra alma confundir-se
Malgrado a permanência ou constância

E nesta aflita busca da metade
Procurando o membro amputado
Que era parte de nós, dissociado,

Que vaga por aí nesse deserto
Mas que porventura anda tão perto
Perdido em sua própria tempestade...

17/01/2007


Soneto de celebração (de Alma Welt) a Vinícius de Moraes

(129)

"E quando por acaso uma mijada ferve
Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma."

(do soneto da Intimidade, de Vinícius de Moraes)
_________________________

Soneto de celebração (de Alma Welt)


É verão e meu pampa me deslumbra
E me conclama à celebração
Como que afastando uma penumbra
Que pesava sobre a alma e o coração.

E sou mais jovem, mais, até guria
E corro pelas sendas das coxilhas
Sentindo como sendo o próprio dia
Como sentem potras e novilhas.

Então sei que vou logo me despir
E agachar-me sobre a relva até sentir
Os talos mais altos na minha vulva

Para então, como pequeno chafariz,
E sendo parte do todo por um triz,
Abençoar as urzes como a chuva!

17/01/2007



Quisera navegar (de Alma Welt)

(128)

Quisera navegar em outros mares
Que não os da campina ou da mente
Singrar águas reais e realmente
Enfrentar raios e açoites pelos ares.

Ser a capitã do meu navio
E ir às terras que na alma visitei,
E que na verdade só ousei
À luz de uma lâmpada ou pavio

Nos serões de minhas noites tão seguras,
Assim pensava eu entre meus livros
E os braços das queridas criaturas

Que me foram deixando lentamente,
Como náufraga aportada entre os vivos
E estrangeira numa fábula demente...

17/01/2007

De outra nudez (de Alma Welt)
(127)

Esta noite acordei muito assustada
Não com simples pesadelo,vos garanto,
Era sonho de nudez inusitada
Que me deixava vulnerável outro tanto

E não como sonhei a minha nudez,
Com aquele cupido dos meus versos,
Queriam-me com outra cupidez
E havia novos lances adversos:

Estava exposta, pública e notória
Podiam comentar-me no café,
Eu não tinha mais recurso ou moratória,

E eu que era verde pasto, farto até,
Agora, na verdade, eu era a rês
Enquanto os lobos esperavam a sua vez.

17/01/2007

Nota

Este soneto parece ser mais um momento de vidência ou de premonição
da Alma.Daí a três dias ela estaria morta e sua morte motivou um
escândalo imenso no âmbito do Recanto das Letras. Os "poetas" cairam como corvos, senão como lobos sobre o seu cadáver, expondo-a a insultos e calúnias, impiedosamente, a começar pela suspeita indignada quanta à veracidade de sua morte. Alma estava como sempre nua e exposta, só que indefesa. Quanto a mim, como sua irmã, estava de mãos atadas, impossibilitada de manifestar-me naquele site onde só pudera entrar na página da Alma para publicar o anúncio de sua morte, pensando ser uma atenção para com seus amigos e admiradores. Ao republicar soneto "Visão" do dia 3/1/2007, para evidenciar a premonição de minha irmã quanto às circunstâncias de seu velório(que ocorreu tal qual sua antevisão) sua página
foi apagada subitamente pelos editores daquele site e seu cadastro cancelado, como reincidência no suposto crime de "notícia falsa". Nunca se viu um caso assim na história da literatura: uma autora ser punida por sua morte.
Entretanto, de lá para cá, meditando sobre essa aparentememente estranha e irracional reação dos editores e dos falsos amigos da Alma, e de tantos leitores indignados, e lembrando-me da máxima que Alma adotara "Não há injustiça no mundo", para tentar justificar a reação do público cheguei à seguinte conclusão:
As pessoas acreditaram mesmo ser uma notícia falsa, a partir do anúncio dos editores que assim o "denunciaram". A indignação veio por conta de uma característica cultural em nossa sociedade católica em que a morte é um dos maiores tabus: não se permite "brincar" com ela. E sobretudo o suicídio, que além de incorrer em crime moral ou espiritual dentro da doutrina católica(herdada da judaica) tem o poder de evidenciar a nossa própria vulnerabilidade: a morte do suicida é a morte potencial de todos nós por esse meio. É como se pudesse ser contagioso. É uma voragem, uma vertigem, chocante e intolerável para todos ao redor. Por isso se apressaram em condenar a maior poetisa surgida no Brasil nos últimos anos.
Mas não contavam com fato de que a Alma já era imortal, por conta da grandeza de sua obra excepcional em prosa e verso.
(Lucia Welt)



A noite escura da Alma (de Alma Welt)

(126)
"La noche escura del alma” (San Juan de la Cruz)

(de Alma Welt)

Noite, noite escura desta Alma
Solidão, angústia e mil tormentos,
A corredeira da memória e pensamentos,
Sem remanso ou praia, não se acalma.

Insônia, inferno dos remorsos
A remoer a consciência despertada,
Ranger de dentes, inúteis, vãos esforços
Para conter a dor desta jornada.

Onde o estuário dos amores, sua foz,
Seus momentos aprazíveis de langor?
Onde as palmeiras do enganoso amor?

Agarrada nessa tal casca de noz
Que me coube no universo porventura,
Náufraga sou na triste noite escura...

17/01/2007

A casa e o lagar (de Alma Welt)

(125)

Emergindo da planície encoxilhada
Como nave entre ondas e revezes
Mas onde fui feliz no mais das vezes
Se ergue o casarão, minha morada.

Aqui eu fui guria, não piá,
Pois nasci no caminho ao Deus-dará,
Na margem de uma estrada, sem estorvo
Entre Blumenau e Hamburgo Novo.

Mas à grande sombra dos avós
Joachim e Frida, godo e feiticeira
Que plantaram a semente da videira

E construiram nova nave, o grão-lagar,
Para fazer nosso vinho, muito após,
Em seu sangue me haveria de banhar.

16/01/2007


Quando as violetas floresceram (de Alma Welt)

(124)

Quando as violetas floresceram
Eu trancei com elas a guirlanda
Com que ornei o piano que esqueceram,
Já que ali a mão dele não mais anda.

O Steinway agora é o seu túmulo
Negro como laje de granito,
E o coração ao vê-lo dá um pulo
Se olhado de repente, como um mito.

A alma ao recordá-lo mais se cala,
Que tudo nesta sala é encantado
E um espinheiro não tarda a cercá-la

Pois sentimos avançar a sonolência
Que, lenta, vai tomando a sua essência,
E um sono de cem anos é chegado...

16/01/2007

Nota da editora:

O piano de cauda Steinway, de nosso pai (o Vati)
grande pianista, após sua morte permaneceu intocado
na sua biblioteca, que por alguma razão parece mesmo
adormecida, e não ousávamos falar ali, Alma, Rôdo e eu
comunicando-nos por gestos, quando íamos procurar algum
livro ou documento.

A plenitude da Alma (de Alma Welt)

(123)

Guria vi meus anseios florescerem
Neste jardim em torno ao casarão,
Não era ainda o tempo de escolherem
Entre os sonhos da alma e os da razão.

Só queria crescer e acrescentar,
Ver o âmago das coisas e dos seres,
Uma certeza maior que os "pareceres",
Rever o mundo sem sair deste lugar.

E quando vi formar-se um tal esboço,
Do caos condensar-se o meu reinado,
E a mente deixar seu calabouço,

Ah! que novo prazer foi permitido,
Ver a vida voltar ao seu estado
De inocência... mas plena de sentido!

16/01/2007

Nota da editora:

Alma se refere aqui a um momento de sua vida em que havia conseguido conciliar o sonho com a realidade, e vivia numa sintonia fina com o sentido oculto dos seres e das coisas. "El sueño de la razón", que segundo Goya produz monstros, ainda tinha o significado de lucidez poética, cheia de harmonia com o mundo circundante. Ao que parece, esse sonho racional, como utopia logo haveria de mostrar a sua face terrível. Talvez seja isso que Alma não suportou. Ela que havia resistido a no mínimo três estupros em sua vida, capitulou ante a dor que ela tão heroicamente desafiava, decidida a viver num mundo de pureza, em que o sexo não conhecia culpa e era parte inerente da beleza do mundo.(Lucia Welt)



A Salamandra retornada (de Alma Welt)


(122)

E a Salamandra apareceu de madrugada
Nas chamas da fogueira na campina!
Estava eu com meu Rôdo acordada,
Co'a chaleira em chiadeira muito fina,

Envoltos nos palas, sob estrelas
Que velavam o serão do meu destino,
E que se aproximaram para vê-las,
Às chamas, e ao show reptilíneo

De seu elemental perante um par
Que assim indagava seu caminho
Qual se fora plausível e comezinho.

Então, acreditem, ela mostrou,
Aquilo que não posso revelar,
E a Alma em solidão sempre sonhou...

15/01/2007

Nota da editora:

*Salamandra- Alma tinha uma ligação muito forte com esse elemental do fogo, e em vários momentos de sua obra se refere à sua aparição nas chamas, presenciada por ela e Rôdo. Estou convencida de que ela realmente via a Salamandra, como um lagartinho vítreo e transparente brincando nas labaredas, e que trazia uma mensagem oculta de seu destino.

Ao oráculo (de Alma Welt)

(121)

Esta noite farei uma consulta:
Preciso saber o meu destino...
Não me refiro só a morte estulta,
Que não sei será acerto ou desatino.

Mas o que será de mim, poeta,
Após passo prematuro ou temporão*,
Meus versos recolhidos comporão
O grande livro que é a minha meta?*

Toda a minha vida nestas letras,
E mais: uma saga do meu Pampa,
Aquela dos avós, netos e tetras,

Tudo e todos que eu trago junto a mim
Nesta Pandora virtual sem tampa*,
Que há de ver-me cavalgando até o fim...

16//2007

Notas da editora:

*"passo prematuro ou temporão"- versos como este nos fazem pensar que Alma pensava em suicídio, e se questionava sobre o "acerto" ou loucura de tal gesto.

* "o grande livro que é a minha meta"- Alma, como todo poeta consciente de seu valor, sonhava ter suas "Obras Completas" publicadas em livro.

* "Pandora virtual sem tampa"- Alma se refere à Internet, onde estava publicando grande parte de sua obra, enquanto esperava (e espera) a resposta das editoras, já que tem apenas um livro de contos publicado por uma pequena editora de São Pau(editora Palavras & Gestos, cujo dono encantou-se com os seus contos e os publicou sem que Alma gastasse um centavo, como ela queria. Infelizmente a editora não distribuiu nacionalmente o livro, e ele permanece restrito a umas poucas livrarias da capital paulista. Entretanto está anunciado e vendido pela Internet, aumentando o seu alcance.



Paráfrase do soneto de Ronsard (de Alma Welt)


(120)

"Quand vous serez bien vielle, au soir à la chandelle,
Assise auprès du feu, devidant e filant,
Direz, chantant mes vers, en vous esmerveillant,
Ronsard me celebroit du temps que j'estois belle."

................................................

Pierre de Ronsard (1524-1585)

Nota: Esta primeira estrofe do célebre soneto, aqui está transcrita da sua fonte original, isto é, no francês arcaico do século XVI (por exemplo , notem o "esmerveillant", o "celebroit" e o "j'estois".


Tradução:

"Quando fordes velha, à noite, à luz da vela
Sentada ao pé do fogo, cardando e fiando,
Direis, lembrando meus versos e vos maravilhando,
Ronsard me celebrou no tempo em que fui bela."
_________________________________________

Paráfrase (da Alma):


Quando eu for velha, aqui na estância,
Sentada ao pé do fogo com certeza,
Direi pensando em minha circunstância:
"Eu mesma celebrei minha beleza!"

"Quando jovem eu era a Alma deste Pampa
E agora aqui me vejo enregelada,
Minha alva pele celebrada
Se pondo preparada para a campa,"

"Murcho e engelhado pergaminho
Com mil sonetos gravados ilegíveis
Mas cheios do sentido do caminho"

"Que a Alma percorreu apaixonada
Pelos versos quiçá imperecíveis
Que fui derramando pela estrada..."

Alma Welt


Quero viver, amar... (de Alma Welt)

(119)

Quero viver, amar, quero explodir,
Quero ser amada até o sangue!
Não agüento mais o meu porvir,
Essa perspectiva assim exangue...

Que posso eu, pobre guria solitária,
Esperar se minha beleza me condena,
Se a paixão dest'alma é proprietária
E começo de mim mesma a sentir pena?

Vago insone pela noite, sonho o dia,
E chego com as unhas a riscar
Meus seios que teimam em me abrasar,

E logo ponho as mãos ali em baixo
Para aplacar de mim essa agonia
De ser eu mesma a cruz em que me encaixo.

16/01/2007


O juramento da Alma (de Alma Welt)

(118)

Pelo amor de minha pradaria
Eu fiz um juramento no pomar:
Aqui viverei até estar fria
Já que posso livremente poetar

E ser a Alma do meu Pampa ideal
Onde nua eu cavalgo no papel,
Um pouco para além do bem e o mal
Com todas as memórias em tropel.

E assim revendo-me em poemas
Atesto a trajetória coerente
Desta minha missão e seus emblemas:

As transfigurações do imanente
Quanto as do aparente até banal
Que formam este meu ser universal.

10/01/2007

Nota da editora:

Este soneto comprova que Alma tinha um consciência
muito forte de sua missão como intérprete de sua região,
com sua expressão inconfundível que fazia de cada elemento
de seu cenário cotidiano um elemento arquetípico. Daí a sua universalidade, que está sendo atestada por um número enorme e crescente de leitores, fãs e admiradores da Musa do Pampa.



A casamenteira (de Alma Welt)

(117)

Pintei-me nua com grande realismo,
Que ao ver a tela a Matilde até gritou:
"Guria, apaga tudo, isso é nudismo!
Já não basta viveres dando show?"

"Eu vejo que és nudista empedernida
E estás cada vez mais descarada,
Se eu fosse a tua mãe, a falecida,
Ia dar-te era mais muita palmada!"

"Eu sei, tu és guapa, mas te guarda,
Vai por mim, que sou casamenteira.
Quem quererá o que não se resguarda?"

"Se te escondes porfim te esquecerão
E haverá alguém que ainda não
Te viu pelada e pague entrada inteira..."

12/01/2007

A caligrafia da Alma (de Alma Welt)


(116)

Hoje dei um pulo até Rosário
Pra comprar um novo rato pro pecê
E logo dei-me conta quão contrário
Seria o Vati se ainda ele me lê.

Ele gostava da linha caprichada,
Caligrafia, e com pena de ganso!
E me trouxe uma pele encomendada,
Pergaminho, ainda sinto o ranço...

Então minha memória agora ergue
Aquele tanto amor à velharia,
Que trazia o Walhalla à pradaria

E me pôs em contato com a escritura
Desde os escribas até o Gutenberg
Com quem começou esta loucura!

12/01/2007

Nota da editora:

Alma tinha uma belíssima caligrafia, e o nosso Vati (papai) só aceitava ler os novos poemas que ela lhe trazia se estivessem escritos à mão, com a pena que ele lhe dera e num belo papel. Alma era guria quando ele lhe trouxe o tal pergaminho, o que deixou Alma em lágrimas pois era a pele de um bichinho que fora morto. Nossa guria já tinha uma consciência ecológica, conservacionista. Este soneto me surprendeu pelo bom humor com que Alma evocou aquele episódio.Talvez seja porque por sua paixão ela tudo perdoava ao nosso pai.



Notícias do Pavão Misterioso (de Alma Welt)




(115)

Rafisa* esteve aqui e revelou-me
Que *Josué espera a minha volta
E não consegue esconder a sua revolta
Com a partida que afinal facilitou-me

Entregando-me na casa do italiano
Em pleno Carnaval-frevo de Olinda
Depois de voarmos meio ano
Por cima daquela terra linda.

"O Pavão Misterioso* nos espera,
(eu li isto em minha própria palma)
Mas não no carroção, minha tapera."

"Quero voar contigo, minha Alma,
No *tapete voador do Josué,
Do Recife à muito vera *Santa Fé!"

12/01/2007

Notas da editora:

* Rafisa- Este é o nome (anagrama de Safira) da cigana recorrente nos textos da Alma. Ela existe mesmo, e era uma amiga muito fiel da Alma, que dedicou a ela um capítulo do seu romance "O Retorno dos Menestréis", e mais de uma crônica, como a "Safira eu e os ciganos" e "A peregrina" ( vide no Leia livro), onde Alma conta um terrível drama vivido por sua amiga cigana. Outra curiosidade sobre ela, foi que a partir de uma estória vivida que ela contou para a Alma e esta repassou para o seu amigo cordelista Guilherme de Faria, este compôs sua obra prima: o cordel "Romance da Vidência" (vide Leia Livro).

* Josué- Jovem sertanejo, irmão da Anunciada, personagens reais descritos primeiramente no conto da Alma entitulado "Na Trilha dos Menestréis, e depois na sua seqüência, o romance "O Retorno dos Menestréis". Alma teve um tórrido romance com esse jovem sertanejo, quando de sua viagem a Olinda e ao sertão pernambucano e paraibano, que ela transformou em conto publicado(Contos da Alma de Alma Welt, pela Editora Palavras & Gestos de São Paulo( vide capa neste blog)
e o romance inédito do qual ela publicou trechos no Recanto das Letras(apagado) e no Leia Livro.

* na casa do Italiano- Esse italiano do qual o primeiro nome é Giuseppe, é real, vive ainda em Olinda e foi "marchand" da Alma enquanto pintora.

* Pavão Misterioso - Alma persegue e incorpora esse mito
nordestino que é o fundamento central de seu conto e romance referidos acima.

* "tapete voador"- aqui, metáfora do Pavão Misterioso alusiva
às "mil e uma noites" simbolicamente vividas pela Alma no sertão nordestino

* "à muito vera Santa Fé"- Alma, através da Rafisa se refere
à cidade imaginária, mítica, da família Terra, depois Terra-Cambará, do monumental romance "O Tempo e o Vento" de Érico Veríssimo, que ela alude com a expressão "muito vera" (muito verdadeira, veríssima).
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24/07/2007

Acerca de vulcões (de Alma Welt)

(114)

No Equador subi uma montanha
Que era um vulcão ainda vivo,
Apenas repousava inativo
Com as brancas geleiras como manha

Pra disfarçar o perigo iminente.
Eu não mais faria essa aventura
Se me convidassem novamente
Pois que na memória ainda perdura

Aquela sensação de erupção,
subjacente, que da mente bem conheço
Quando começo a escrever em profusão

Sonetos, mais soneto, outro soneto...
Eu sei que é exagero, reconheço,
Mas conter-me, perdoai, eu não prometo.

12/01/2007


A Salamandra (de Alma Welt)


A Salamandra- acrílica s/ duratex, de Rodrigo de Haro,1973 ( grande pintor e poeta de Florianópolis, SC) 30x36cm, coleção Flávio Pacheco, São Paulo, SP, Brasil.

(113)

Me lembro de um inverno de lareira
(embora estejamos no verão),
Preparando do mate a saideira
Quando algo fez notar-se ao meu irmão:

"Olha, Alma, nas chamas, olha ali!"
Eu olhei e por instantes nada vi,
Até que por sua insistência,
Finalmente vi Sua Excelência

A Salamandra, um lagarto transparente
Que brincava no fogo ali em frente
Como um ser de vidro, embora vivo.

E eu, comovida, percebia
Que a nota mesma, e o motivo,
Era a dádiva, a mim, da alegria...

12/01/2007


Recordações da guria do pampa (de Alma Welt)

(112)
Quando guria subi no umbu pampeiro
Para ver o mundo lá de cima
Mas logo deparei c'um formigueiro
E perdi por um minuto a auto-estima.

Gritei: "Rôdo, Galdério, me acudam!
Não sei mais descer, estou com medo,
Aqui tem formigas e elas grudam,
E já uma delas me picou o dedo!"

Rôdo, rindo até rolando, retorquiu:
"Bah! Quem te queria ver pelada hoje viu,
Já que estás por baixo sem calcinha,"

"E agora que estás nessa forquilha,
Cuida que não entre formiguinha
Nessa tua rachinha-maravilha!"

12/01/2007

As marés da Poesia (de Alma Welt)

(111)

As marés da poesia são propícias
A quem lhe são devotos e leais,
Trazem as imagens e as delícias
Que ao comum dos homens são fatais

Pois o poeta ao revelar-se perderá
O pouco ou muito crédito que tinha.
Mas afinal, um dia mesmo saberá
Por quê com sua poesia não definha:

Ela reina soberana sobre o mundo,
Ela é as verdades e as belezas,
Voz dos seres e das coisas, mar fecundo

Por onde só navegam deidades,
Os perdidos navegantes, realezas
Desde o princípio das idades...

12/01/2007

A orgia dos amores (de Alma Welt)


(110)

A memória dos amores é um recurso
De não aceitação da finitude:
Ao guardá-los eu os mantenho em curso,
Já que retê-los mesmo nunca pude.

Assim insisto e os faço desfilar
Nas minhas noites tão sozinha,
Como súditos dispostos a me amar
E ceder aos meus caprichos de rainha.

Escolho um, namoro e o conduzo,
Aquele ali espera, paciente...
Rejeito outro por deveras insistente.

Mas afinal, de tanto amar e dar,
Acabo numa orgia tão confusa
Que só me resta rir, depois... chorar.

12/01/2007

O som da fruta (de Alma Welt)

(109)

Tem dias em que ando meio a esmo
Nos locais preferidos desta estância
Procurando o sentido, aquele mesmo,
Que neles encontrava na infância.

Mas percebo que a concentração
Como modo de estarmos num local,
É o contrário da perfeita integração
Que nos fazia ser o ser total

Que éramos naqueles tais instantes
Como a sombra fugidia de uma truta
Nas águas, com rumores circundantes

Do surdo crescimento de uma fruta,
E a vida um encontro tão fecundo
Em que olhávamos a flôr, e era o mundo!

11/01/2007


A proposta da Alma (de Alma Welt)

(108)

Meus desejos de mulher-artista
Por certo são acima do normal...
Não me venham, pois, com "feminista"
Nem com nova "diva digital"!

Mas uma paixão feita poesia
Por interpretar cada minuto,
Cada ângulo do transcorrer do dia
E das pequenas coisas que transmuto

Num mundo de beleza e de sexo,
Pelo olhar, desejo e sentimento,
Mesmo que o deixe tão perplexo,

Eis a proposta desta Alma inusitada
Que veio para dar um novo alento
À feminina condição amesquinhada.

10/01/2007

Da gloriosa infância da Alma (de Alma Welt)

(107)

Aos nove eu já fugia do meu leito
Pra subir até o Rôdo na mansarda,
Pra com ele comer algum confeito
E sonhar com "feitos de vanguarda".

E depois de uma "noite de prazer"
(às vezes eu dormia em seu colchão)
Nós descíamos ao amanhecer
Para o desjejum com chimarrão.

E logo zás! pra fora em correria
Para escapar da dura inquisição
Da Mutti, que apartar-nos gostaria...

Então, brisas no rosto, ó meu "sertão"!
Ó pampa!... de mãos dadas e ao léu,
Nossa infância gloriosa sob o céu!

10/07/2007



A zona do coração (de Alma Welt)

(106)

Entre sombra e luz cai o vazio
Que é da visão e sonho o limiar,
E essa zona ambígua em tom macio
Guarda o coração em seu amar,

Posto qu'ele mesmo não é bem claro
Conquanto igualmente não escuro,
Quer o esclarecido e o obscuro
Assim como o profuso ama o raro.

Mas mesmo tão chegado a submundos
O amor mal se perde em emoções
Outras que a da luz que a ele impões,

Ó coração obstinado e incoerente
Que tens a natureza da semente
A brotar na fronteira de dois mundos!

10/01/2007


Visão e entrevista (de Alma Welt)

(105)

Fui contactada por ilustre jornalista
Que veio até mim me entrevistar,
E olhando na varanda aquela vista
Confessou que havia pouco a perguntar

E disse: "Ah!Alma agora entendo
Que não possa daqui se afastar.
Esse tapete feito a deslumbrar,
Daqui ao horizonte se estendendo..."

"Percebo, poetisa, a comoção
Que faz assim abaixar o seu olhar
Para então fixá-lo no papel..."

E eu disse: "Fulano, tens razão,
Mas sinto-me traindo a minha visão
Ao cobri-la de palavras como um véu."

10/01/2007


O abraço do vento (de Alma Welt)


(104)

Matilde, não adianta me olhares
Com olhar de censura, volta e meia.
Não tem jeito, embora eu tenha ares
De princesa que às vezes titubeia.

Me queres no papel que era da Mutti,
Mestra da ordem, do mate e do tomate,
Ou mais ainda: do meu amado Vati
Que era Deus, isso nem mais se discute.

Sei que viste-me sair mais uma vez
Nua ao vento em plena pradaria,
E julgas que tua Alma desvairia.

Mas juro-te, Matilde, se assim faço
É pra sentir de novo aquele abraço
Do meu pai, guria em minha nudez...

10/01/2007

O pedido da Alma (de Alma Welt)

(103)

Quando eu morrer me enterrem no meu prado
(quanto gaúcho já fez este pedido!)
Mas não quero pranto, prece nem gemido,
Quero mais é um fandango entusiasmado

Com chinocas, prendas e peões
Gaudérios, "gauchos" fanfarrões
Taconeando com as esporas pela lança
Numa pelea enérgica de dança!

E quero isso ao lado da minha cova,
Ou se possível mesmo em cima dela,
Que de amor só quero palmas como prova.

Uma lágrima porém permitirei,
Aquela do herdeiro do meu rei:
Meu irmão, de noite, o choro e a vela...

11/01/2007

Soneto do dique (de Alma Welt)

(102)

Quando guria, no galpão eu costumava
Vir sentir o cheiro agradável
Do feno da forragem e do provável
Tonel vazio de vinho que sobrava.

E foi ali que ouvi gritos e gemido
Que jamais ouvira nem num quarto,
E aproximei o peito comovido,
Pensando que alguém estava em parto.

E eis que, pela fresta, muito tesa,
Vi de quatro (que jamais esperaria),
As nádegas de Elke, a holandesa,

Sendo bombeadas por Henrique
Cuja imensa ferramenta permitia
Ver por onde ia vazar aquele dique.

11/01/2007

Variante do "Passeio sob a lua" (de Alma Welt)

(101)

À noite quando a lua é propícia
Eu me levanto para andar no meu jardim
E escoltada logo sou pela milícia
Dos pirilampos do início até o fim

Desse passeio encantado sob a lua
Em que, sabeis, não tardo a me pôr nua
Para sentir aquela brisa me afagar
E os bicos dos meus seios titilar.

Então eu me agacho sobre as urzes
E urino em impulso inusitado,
Depois bem molhada me deixando

Como se o território demarcando
Eu não perdesse jamais o meu reinado
Sobre este meu Pampa e suas luzes.

11/01/2007

O secreto perfume (de Alma Welt)

(100)

Quando nua eu me olho nos espelhos
É quando vêm as lembranças dos amores:
As mais doces carícias nos pentelhos,
As mucosas exalando seus odores,

O arrepio na nuca, o sussurro
Ecoando surdo em minha orelha
Num crescendo até virar um urro
Que a um grito de dor se assemelha.

Então entra uma certa crueldade
Como um querer morder-me ou devorar
Ou beber-me até a saciedade

E me entrego assim despudorada
Pra que afinal me sintam exalar
O mais secreto perfume da Amada!

09/01/2007


O que me disse a cigana (de Alma Welt)

(99)

Um dia voltando do meu bosque
Onde fora colher belas amoras
Eu vi uma espécie de quiosque
E ciganos a dançar as suas horas.

Pensei:"vou ofertar-lhes o que aqui tenho,
E juntar-me a eles por minutos..."
Ah! por quê é que não contenho
Esta sede de espalhar todos os frutos?

Pois logo uma delas veio a mim
E afoita agarrando a minha mão
Me levou para atrás de um carroção

E com estranho olhar me disse assim:
"A *Moira vê, te cobiça, e eu cuidaria,
Porquanto jorras tanta e tal poesia!"

08/01/2007


Notas da editora:

* Moira - A Morte, uma das várias naturezas
de Ananque (a Necessidade) entre
os antigos órficos gregos. É um princípio teogônico
(arqué) ao mesmo tempo que uma deusa. Outras naturezas da
Necessidade eram, por exemplo, Dyké(a Justiça),
Niké( a Vitória), Fado (o Destino), Belona (a Guerra),
a Discórdia, etc.

Este soneto me parece mais um momento de
de premonição da Alma, quanto à proximidade
de sua morte, onze dias depois.


Minha lembrança da tia (de Alma Welt)

(98)

A única lembrança de uma tia
Que guardo, é um pouco nebulosa.
Uma quarentona glamurosa
Que era irmã da Mutti, a tia Luzia.

Chegou na estância e logo fascinou
A todos com sua grande simpatia
Que digo? Sua beleza é que marcou,
Mas talvez fosse um pouco de magia

Pois a tia, ah! que grande sedutora,
Quiz ensaiar e montar encenação
E ensinar-me a dançar e ser cantora

De cabaré, mais exatamente...
E logo o Vati levou-a à estação,
E a face dela ficou velha... de repente.

06/01/2007


O passatempo das horas (de Alma Welt)


(97)

Para escapar às tentações do tédio
Não aceito nenhum jogo de baralho,
Nenhum de tabuleiro ou o borralho
Dos sentimentos e do raciocínio médio.

Em matéria de cartas só respeito
As da cigana com seu pacto astral
Ou aquelas que exigem muito peito
Como as do Rôdo em seu pôquer marginal.

Mas servil, vejo o passar das horas
Como um mordomo que exige as atenções
A elas porque são grandes senhoras

Que preferem o soprano da poesia
Que lhes é apresentada nos salões
Onde o próprio Tempo se enfastia.

05/01/2007


Estrelas que namoro (de Alma Welt)

(96)

Estrelas que namoro, as cadentes
E outras que aqui têm sua morada!
Por elas eu me sinto observada,
Já que são tão condescendentes...

Como antes me dispo sob a noite
Para nua exibir-me às estrelas
Antes mesmo que a lua se afoite
Em evitar que eu venha corrompê-las.

E ponho-me com elas quase azul
Nesta grande orgia do meu Sul
Numa nudez geral, ainda mais belas...

Mas sei que a festa é pré-nupcial
E longe do seu grande plano astral
Sou só pequena chama como as velas.

06/1/2007

O tamanho do mundo (de Alma Welt)

(95)

Guria andei sozinha numa estrada
Aqui mesmo na estância, para ver
Aonde ela ia dar, e desastrada
Não cogitei da confusão que ia fazer.

Andei por uma hora e não acabava,
E já passava da hora de almoçar.
Pensei: mais uma hora pra voltar...
E sentando à margem mais chorava.

Então vi o Galdério na charrete
Que a mando do meu pai me procurava
E conhecia muito bem esta pivete

E levantando e enxugando o ranho
Eu disse: "Ah! Galdério, eu não contava
Com que o mundo tivesse esse tamanho..."

06/01/2007

A grande casa muda (de Alma Welt)

(94)

Grandes tomos, encadernações de pano
Nas prateleiras à volta do piano;
A mesa com o globo e o diapasão,
A cuia e a bomba... o chimarrão.

O Steinway mudo e quedo continua,
Mas negro e luzidio como era
Somente um acorde reverbera,
Aquele mesmo da despedida crua.

Velei o "maestro" entre tocheiros,
Ou tentei em vão por uns instantes:
Tiveram que arrastar-me... os ordeiros!

E agora eu procuro nas estantes,
Nos quartos, no salão, até na cave,
Uma carta, uma frase... uma chave.

05/01/2007
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À sombra do umbu (de Alma Welt)

(93)

Ai! Pampa, Pampa, aqui eu viva,
Que de tanto viver hei de morrer!
O coração aqui vai à deriva,
E o farol está longe de acender.

Aqui o olhar não tem fronteiras;
As coxilhas, ilhas mesmo e encantadas,
Isso eu confirmo, não são leiras,
Ali as almas estão transfiguradas

Dos peões, suas rêses e seus laços,
E nas sombras deste umbu pampeiro
Poderás ver ainda os seus traços:

Ali uma chinoca e seu gaudério,
E lá a faca e a sede de um vaqueiro
Que na vingança buscou seu refrigério...

05/01/2007
Postado por Lúcia Welt às 10:16 AM 0 comentários
13/07/2007
A Louca do Pampa (de Alma Welt)

(92)

Vai, Galdério, encilhar a minha égua!
Não vês que estou necessitada?
Se não me trouxeres a montada,
Correrei a pé por uma légua.

E não sei não se voltarei pra casa,
Pois a meta é linha do horizonte,
Que o povo diz que é atrás do monte
E só sei que daqui parece rasa.

Bah! Aperta a cilha, o que queres?
Derrubar-me pra *trazer-me no teu colo,
Como quando desfolhava mal-me-queres?

Bueno, solta a rédea, *gaucho tolo
Vou galopar até virar uma *abantesma,
Não mais podes proteger-me de mim mesma!

05/01/2007

Notas da editora:

* "...trazer-me no teu colo"- Galdério, o charreteiro,
caseiro e faz-tudo da nossa estância,irmão da Matilde,
(nossa ex-babá e atual cosinheira) tinha uma grande
devoção por Alma e quando ela era criança costumava
tirá-la da charrete e carregá-la adormecida nos seus
braços, quando vinham de um passeio longo, ou quando
ia buscá-la longe nas suas andanças de guria aventureira.

* gaucho- pronuncia se "gáltcho", à maneira castelhana.
Alma adorava o Galdério e o chamava assim.

* abantesma- Alma gostava desta palavra
esdrúxula que significa fantasma.


O segredo do meu vinho (de Alma Welt)


(91)

Ali onde a colina encontra a lua
Como imenso sonho branco a flutuar
Contra a nave em silhueta do lagar,
Quanto sobre as uvas me pus nua!

Invocar Dioniso é o caminho
E deve ser ritual inusitado:
Somente o meu corpo despojado
Pode chamar as forças do meu vinho.

Então eu sento no sangue do lagar
Com meu sexo também prestes a sangrar...
Eis revelado o segredo do meu tinto.

Não me venham dizer qu'isto é "de demos",
Não percebem o buquê como é distinto?
Ao aroma e cor da Vida, ah! brindemos!

05/01/2007


Nota da editora:

Como os leitores já perceberam, a família Welt
tem um vinhedo em nossa estância e produzimos vinho tinto
pelo sistema tradicional das uvas amassadas com os
pés no lagar. Como Alma contou no soneto desta série
entitulado "A Alma do meu vinho", ela realmente rolou nua
"no mingau das minhas uvas", no auge de sua beleza
aos dezessete anos, e eu mesma testemunhei isso.
Entretanto, creio que isto que ela conta aqui
de ter se sentado nua menstruada sobre as uvas no lagar,
deve ser somente licença poética ou um belíssimo simbolismo,
pois creio que poderia comprometer a safra,
ou mesmo vinagrá-la (risos).
Bem... mas com a doce Alma, nunca se sabia...



Estórias de chimarrão (de Alma Welt)

(90)

Eu vi o cavaleiro em sua chegada
E admirei o nome e a saudação;
Estava ao lado de meu pai e fascinada
Vi o velho passar-lhe o chimarrão.

Então começou aquela charla
De velhos companheiros de noitada,
Até que ouvi um nome: Carla,
Sussurrado de maneira disfarçada.

E eu, guria de imaginação voraz
Logo pus-me a imaginá-los enredados
Numa trama de ação meio patética

Entre dois amigos: Welt e Vaz,
Que ficaram muito tempo separados
Somente pela mesma escolha estética.

05/01/2007

De sonhos e desejos (de Alma Welt)

(89)

Tenho sonhos e desejos impossíveis
Que não ouso sequer pôr em palavras,
Mas se as coisas que contas são incríveis,
Só tu sabes, ó mente, o que travas.

No entanto, o já escrito é verdadeiro
Tudo real, fruído ou ainda dói,
E não me envergonho se é herdeiro
Do *Divino Marquês ou de Tolstói.

Pois eu sinto que preciso escrever
Para existir, gozar ou não morrer
Com a volúpia de jorrar e mais jorrar

Assim como a cascata do meu poço,
Que embora enquanto rio busque o mar
Cuida sempre seu espelho não turvar.

04/01/2007

Nota da editora:

* "do Divino Marquês ou de Tolstói"- Alma sugere
o contraponto de dois antípodas, o Marquês de Sade
(que os surrealistas cultuavam
sob o epíteto de "o Divino Marquês"), e
o literariamente casto e quase santo escritor russo Leon Tolstói.


O pastor sem remorsos (de Alma Welt)


(88)

Um jovem pastor aqui da estância
Resolveu se aproximar do casarão:
Não vira piscina em sua infância
E queria ver a filha do patrão

Nadando, como sempre, assim pelada,
E escondido, então, atrás da sede,
Ali fica por quase uma jornada,
Enquanto uma ovelha se escafede.

E quando afinal interpelado
Por quê e se não ia arrepender,
Já que uma ovelha até morreu

Ele com o olhar emocionado
Disse afinal, sustentando o meu:
"Eu mesmo já podia até morrer..."

04/01/2007

Lembranças do corpo, dores da alma (de Alma Welt)

(87)

Faz tempo que não me banho nua
No poço da cascata ou na piscina
E sinto que se o tempo não atua,
Um crescente pudor meu corpo mina.

Onde está a inocência de outrora,
Peladinhos eu e Rôdo na campina?
A verdade é que a confiança mora
Onde a dor e o real não contamina.

Ainda lembro como fui tão humilhada,
Colocada aberta após a luta
Para ser degustada como fruta

Ali, no bosque, não longe destas águas
(e a alma ainda insiste nessas mágoas)
Exaurida, aurida e... violada!

04/01/2007

Nota da editora;

Descobrindo este soneto, fiquei perplexa e abalada.
No soneto Alma pretende revelar que já teria sido
violada antes, às margens da cascata onde seria morta
duas semanas mais tarde?
Ou teria sido mais uma antevisão, premonição ou vidência,
contada poeticamente de uma perspectiva póstuma?

A Harpia revisitada ( de Alma Welt)

(86)

Meu irmão quer dar-me uma Harpia,*
Quer dizer, um presente de rainha:
A águia das florestas e da Arcádia
Outrora monstruosa e mesquinha.

E tudo porque soube da aventura
Que tive com o tal colecionista,
Quando fui, digamos, finalista
Para desenhar a criatura.

Sim, aquele Antônio fazendeiro
Que acabou revelando o seu desejo
Para além do seu intento pioneiro.

Narrei tudo no meu conto celebrado
E agora, de repente, assim, revejo
O medo do *ménage inusitado.

04/01/2007

Nota da editora:

Creio que este soneto puramente evocativo, seja de difícil compreensão para
quem não leu o conto "A Harpia", do seu livro de contos
publicados pela Editora Palavras & Gestos(de São Paulo)
"Contos da Alma", de Alma Welt, que se encontra em algumas livrarias da capital paulista e pode ser adquirido pela Internet (vide "Alma Welt" no google). Lá embaixo, neste blog, antes do primeiro soneto da série publiquei a capa do mencionado livro.
Algumas pessoas(eu inclusive) consideram o conto A Harpia
uma obra-prima da Alma.

*" ménage inusitado"- no conto cheio de suspense A Harpia, Alma se vê envolvida numa espécie de "ménage-a-quatre", isto é um quatrilho composto por
ela, Antônio(o colecionador de aves raras), sua mulher Chiara, e a própria Harpia, a fantástica águia das florestas brasileiras, que era a estrela da coleção
do fazendeiro paulista que contratou e hospedou Alma em sua fazenda, como artista plástica para retratá-la num desenho.



Sobre a poesia dos minutos (de Alma Welt)


(84)

Observo as abelhas em seu vôo
E penso que descubro o seu segredo:
A concentração no eterno enredo
É a chave do sucesso do seu povo.

A rotina é talvez poesia pura
Ou é ela mesma o seu sentido
Pois ela não exclui a aventura
Que põe todo plano dissolvido.

E me ponho a cogitar se fico quieta
Imóvel no meu canto e encantada
Não me torno a essência do poeta,

Pois não há maior mistério e poesia
Que a senda dos minutos, tão pingada
Traçando a perigosa travessia.

04/01/2007


O valete (de Alma Welt)

(83)

Acompanhada do meu cão Orfeu
Eu me ponho a andar na pradaria.
Isso faço como um rito meu
E como forma de começar meu dia.

E fico atenta a tudo o que ele indica
Enquanto ele parece me mostrar
Tudo o que a ele significa
Alguma coisa que mereça se notar.

E hoje ele notou (não me consterna)
Que sangue me escorria pela perna
E ele veio lambê-lo com doçura.

E eu o deixei fazer a minha "toilette"
Pois sei que a natureza é muito pura
E o meu Orfeu... o melhor valete.

11/01/2007



Ao meu Orfeu (de Alma Welt)

(82)

O meu grande e querido cão Orfeu
Olha-me de um jeito indefinível
E já não sei se é ele ou se sou eu
O ser de pensamento ou o sensível.

Às vezes penso que ele quer falar
Mas não poderei nisso apostar...
Seu coração já fala, certamente,
E bate com o meu conjuntamente.

E eu gostaria de um poema dedicar
(e que ainda não é este, eu o sinto)
Ao cão cuja vida é só amar

Pois vejo que ele pouco está atento
A outras coisas, e não minto
Se afirmo ser eu mesma o seu alento.

04/01/2007



De nuvens e de sombras (de Alma Welt)

(81)

Hoje o dia amanheceu enevoado
E sinto me será triste e pesado.
Mas logo vejo e ouço a passarada
Cantar do mesmo jeito, entusiasmada,

E dou-me conta, então, do vulnerável
Que sou enquanto fêmea, ser poético,
Pois a nuvem escura, pouco amável,
Faz de mim um ser quase patético.

A obscuridade de um momento
Lança uma sombra de defesa
Sobre o coração e o pensamento

Desta poetisa um tanto instável
Que ainda não rendeu à Natureza
De uma ave a confiança inabalável.

04/01/2007



Uma canção às donzelas (de Alma Welt)

(80)

Amai, donzelas, e se possível, dai-vos.
Nada se leva desta vida muito breve.
Direi como os antigos: coroai-vos
De flores, e que a dor o tempo leve.

Chegamos náufragas no mundo,
Donzelas encantadas qual Miranda*
Diante das mesuras e ciranda
Dos mancebos que sempre vão ao fundo*.

Perdemos a inocência lentamente,
Eis o nosso encanto e candura,
E tudo foi criado docemente

Por um Deus que ama tanto a criatura
Que a concebeu assim, urna selada,
Mais preciosa depois de violada.

03/01/2007

Notas da editora:

* Miranda - personagem da peça A Tempestade, de William
Shakespeare. Filha de Próspero, duque de Milão, que naufragou com ela em viagem e se tornou o rei de uma ilha encantada, criando Miranda na inocência, longe da malícia e maldade do mundo.

*..." mancebos que sempre vão ao fundo"- Alma com esta expressão ambígua parece aludir ao jovem Ferdinando, filho do usurpador, rival de Próspero que posteriormente naufraga, e quase se afogando vai dar à mesma ilha, sendo salvo por Miranda que se apaixona por ele. Ao mesmo tempo,o verso "sempre vão ao fundo" pode conter uma deliciosa malícia, típica da nossa Poetisa.



O contrato (de Alma Welt)

(79)

O contrato que redijo a cada dia
Pela visão do mundo e da poesia,
Será meu testamento da velhice
Que chegará um dia, sem pieguice.

E quero estar montada num legado
De mil sonetos, contos e poemas
Que velarão o meu sono atribulado
Do negócio de sonhos e de temas.

Tudo é vaidade, dirão, e eu concordo.
Mas quê resta ao homem ou ao poeta
Senão criar um mito ou uma meta?

Filhos, fortuna, casa, ofício, arte,
São o nosso lado de um acordo
Com a Morte, que trará a sua parte.

03/01/2007



Buenas falas (de Alma Welt)

(78)

O "gaucho" velho entrando se achegou
Trazido por meu pai à nossa sala
E pegando o meu queixo me olhou
Fundo nos olhos antes desta fala:

"Buenas, tchê, que prenda rareada!
Esta guria vai falar por todos nós,
Não somente pelos pais e os avós
Mas por todo o vinhedo e a peonada."

"Mas, bah!, co'esses olhos verde-guampa
Que atravessam o coração e causam dor
Não haverá par pra ela neste pampa!"

"Ela não se casará, infelizmente,
Mas não te preocupes que o amor
Será desta alma um bom servente..."


03/01/2007


Visão (de Alma Welt)

(77)

Ser a musa eternizada do meu pampa!
Cantar, celebrar e endoidecer
De tanto amar até saltar a tampa
Do coração e da mente, e então morrer!

Nua, estranhamente, sobre a mesa
Estendida me vejo, uma manhã:
Um desfile silencioso me corteja
De peões, peonas e algum fã.

Mas olho o meu corpo de alabastro,
Absurdo e belo ali, e não à toa
Eu noto algo nele que destoa:

Sobre a alvura do pescoço bailarino
Uma faixa vermelha como um rastro
Da corda que selou o meu destino...

03/01/2007

Nota da editora:

Este soneto, a meu ver de espantosa beleza, contém a vidência do que iria acontecer poucas semanas depois, no dia 20, com o velório de Alma em circunstâncias idênticas às descritas no soneto.
Minha irmã foi encontrada afogada no poço da cascata, nua (seu vestido branco estava sobre a pedra chata), a um palmo da superfície, como que flutuando submersa, com uma corda no pescoço, ancorada por uma grande pedra no fundo do lago.
Rôdo gritou, mergulhou vestido, e retirando a corda subiu com ela e veio nadando, e urrando. Estendeu-a na prainha e tentou a respiração boca-a-boca. Era tarde. Automaticamente, Galdério (que sempre a tomava assim adormecida, para retirá-la da charrete quando guria) pegou-a nos braços e veio pela campina com o olhar perdido, ela nua em seus braços, pelo caminho entre um ou outro peão perplexo, entrou no casarão e depositou o corpo de Alma sobre a grande mesa do salão. A trágica notícia corria, peões e peonas, as trabalhadoras da vinha e suas filhas foram invadindo a sala. E começou aquele estranho desfile silencioso, numa reverência muda que era tanto pela morte como pela beleza daquele corpo alvíssimo, lívido, como uma estátua de alabastro ou do mais puro mármore de Carrara, a não ser pela marca avermelhada que a corda deixara em em seu lindo e longo pescoço de bailarina. Então Matilde entrou interrompendo essa verdadeira loucura coletiva, e cobriu-a com uma toalha de mesa, branca, de renda, gritando: "Cubram a minha guria! Afastem-se, seus ímpios, cubram a minha guria!"
Eis as circuntâncias espantosas, pois romanescas, da morte da nossa Poetisa.
Revendo-as ao longo destes meses, começamos a suspeitar que não tenha sido suicídio, o que não chega a ser consolo para a nós, pois a alternativa é igualmente trágica e violenta. Há dois meses um delegado da nossa região está procedendo investigações tardias, aqui na estância.
Resolvi contar o acontecido aqui no seu blog, pois acho que apesar de tudo, prefiro a segunda alternativa, não sei... Alma amava demasiado a vida para tirá-la de si, e com tal violência.
Outro absurdo, foi que, republicando cinco dias após a sua morte este soneto na página da Alma que encontrei com a senha salva num dos dois sites literários em que ela publicava, no meio de um imenso escândalo e discussão no Forum daquele site, tipo "Alma existe? Alma não existe?" (de 12.000 e tantas leituras, pulou para 14.000 e poucas)Alma foi expulsa cinco dias depois daquele site (513 textos apagados) e seu cadastro cancelado, por intriga de invejosos que levantaram (pasmem!) a suspeita de que ela não existia, de que era o heterônimo de alguém! Talvez porquê seu nome significa Alma do Mundo (Anima Mundi), o que ela verdadeiramente era, e é, como poeta e mulher maravilhosa. Ó pobres de espírito!




Éden (de Alma Welt)


(76)

Alvorada plena sobre o prado
E eu saúdo a manhã do novo dia
De amores, vida e bom-olhado,
Com que olharei a minha poesia:

Sacerdotisa e musa, a agradecer
O sacro e o profano desta vida
Ser digna do supremo dom de ser
E jamais renegar a estranha lida.

Ah! Aí vêm Pê e Pati, meus anjinhos,
Seguidos de seus primos Chris e Hans
Que me abraçam inebriada de carinhos...

Pois começar o dia co'as carícias
Deste meu pequeno círculo de fãs
Senão poesia, é Éden de delícias!

03/01/2007


NIHIL, ou Velho Tema (de Alma Welt)

(75)

Quando penso que o meu melhor poema
Será aquele que nunca escreverei,
E que, entre mil, o melhor tema
Não terá sido nenhum que celebrei;

Quando percebo que tudo é aventura
E a vida não é mais que puro jogo
De dados lançados à ventura
E cercado pelo blefe e pelo logro,

Eu sei que construí em chão de areia
E recheei de hóspedes bisonhos
A mansão que eu queria sempre cheia.

E que no fim de uma vida de trabalho
Verei ruir como um castelo de baralho
Toda a arquitetura dos meus sonhos...

02/01/2007



De facas e corações (de Alma Welt)

(74)

Meu pai tinha um peão na estância
Que parecia um anjo de bombachas:
Seu olhar ficara em sua infância,
Mas na cintura ostentava faixas

Que abrigavam a dura faca de peão,
E que ah! não deveria estar ali,
Pois foi ela que no tribunal do Juri
Condenou-o a dez anos de prisão.

E eu que vira o caso se enrolar,
Embora fosse uma guria idealista
Cheguei a conclusão nada simplista:

Que entre gesto, faca e os corações
Havia todo um mundo de razões
Qu'eu levaria a vida a desvendar.

02/01/2007



Sonhei-me como nau... (de Alma Welt)

(73)

Sonhei-me como nau em tempestade
Perdida entre ondas muito altas,
Lutando pra chegar na minha herdade,
Contra o clamor das minhas faltas.

Afinal o céu se abriu e era bonança,
Aquele mar quedou-se em calmaria,
E eu era nave e sua esperança
De avistar de novo a pradaria.

Eis que acordo então na minha cama
E corro à escotilha para olhar
A nau que sou, singrando no pomar.

Mas logo essa visão desvaneceu:
Sem deixar a sua trilha pela grama
No labirinto a nave se perdeu...

02/01/2007


Às águas do meu poço (de Alma Welt)


(71)

Ele me espera, eu sei que morrerei
Sob a face do meu lago, tão serena.
Aqui eu fui feliz como nem sei,
Aqui eu mergulhei desde pequena.

Sou a Ofélia nua do meu poço:
Aqui fui cobiçada em minha pureza
Fui ali tomada com rudeza,
E continuo pura, sem esforço.

Nada tive que cobrar da natureza,
Nada tenho a reclamar do meu destino...
Sou Alma, a poetisa, e sou a mesma

Guria branca de gênio sonhador
Cuja vida haverá de ser um hino
À beleza, à liberdade e ao amor!

01/01/2007

Nota da editora:

Apezar de diagnósticos médicos controversos,
que incluiram inclusive "transtorno bipolar",
poemas como este me fazem ter certeza que Alma amava
demasiado a vida para ter aquele gesto extremo,
auto-destrutivo...
Por outro lado o soneto faz pensar no pressentimento,
senão vidência, de seu fim próximo.


Primeiro do ano (de Alma Welt)

(70)

É primeiro do ano na fazenda
E vou cedinho andar na pradaria
Para abrir a minha nova agenda
Que é toda esperança e alegria.

Sou viva, tenho humor e estou jovem,
Tenho só que agradecer os privilégios,
Muitos fatos e pessoas me comovem.
E os presentes da vida me são régios.

Estou só, eu sei... como não estar?
Quero dizer, nascemos assim, tão...
Mas tenho tudo para encontrar meu par:

"Não é bom que a fêmea viva só",
Disse Deus que a criou antes do Adão
E a escondeu pra que assentasse o pó...

01/01/2007


Vai-te, ano... (de Alma Welt)

(69)

Esta noite cantarei os meus amores
Despedindo triunfante o ano findo,
Com todas as delícias e os horrores
Daquilo que foi feio, e o que foi lindo.

Andrea, me perdeste, te perdi.
Mayra, aluninha arrebatada
Por tua mãe, em cantata inacabada;
Mano Rôdo, viajaste, meu guri!

Kibsel que afrontaste tua morte
Por amor que no entanto não fui eu;
Aline que escolheste tua sorte

E fugiste com teu Marco* que era meu
Fruto de teu amor com meu irmão...
Vai-te, pois, ó ano, ó confusão!

31/12/2006

Notas da editora:

No seu romance "O Sangue da terra", terceiro tomo da trilogia A Herança, Alma conta que Aline desejando ter um filho que pudesse criar junto com Alma, entregou-se com a conivência desta ao Rôdo, nosso irmão, para conceber, sem compromisso deste. O menino que nasceu foi chamado Marco, e Aline, cuja mente mudou após a maternidade, acabou abandonando Alma e voltando para São Paulo carregando seu filho.


Onde dormem os amores (de Alma Welt)

(68)

De onde vêm estas vozes, burburinhos,
As zangas de amor dos meus perdidos
Pai, mãe, irmã, cunhado, e uns vizinhos
Que nos traziam seus jogos divertidos?

De onde vem o clamor dos exilados,
Suas andanças no quarto e corredores,
Onde estão dormindo meus amores,
Onde a paixão e o beijo dos amados?

Na parte do jardim, mais afastada,
Têm sob a campa sua guarida
Pra que não assombrem a fachada

(que não tarda a também ser engolida
pelas sombras do avô e da avó Frida)
Desta grande casa atormentada...

31/12/2006



Noite de Ano Bom (de Alma Welt)


(67)

Sob a peneira de estrelas vou passar
A noite de Ano Bom em meus jardins.
Não quero luzes, fogos, festejar,
Além dos vagalumes, querubins:

Minhas crianças lindas, crescidinhas,
Pré-adolescentes, mas tão doces,
Que em volta darão suas corridinhas
Num agitar e rir nada precoces.

E sinto, ó coração, estarás pleno
De calma e de doçura nesta noite
Que nos abençoará com seu sereno...

E nada poderá nos separar,
A vida, as paixões com seu açoite,
Enquanto a jura desta noite perdurar!

31/12/2006



Explode, ó beleza... (de Alma Welt)

(66)

Explode, ó beleza, na campina!
Quero chover, plantar e germinar...
Ser as ervas, as flores, a ravina
Por onde flui o regato para o mar!

Sou a alma, eu sei, desta porção
Do pampa que me viu desabrochar,
Ser mulher-poeta e sua canção,
E ser guria feita para amar

E que por ser novilha e amazona,
Pequena fêmea aérea, estabanada,
Tanto gaúcho sonhava ver na zona,

Mas que, prenda da vinha, a peonada
Viu crescer, fluir nua e mergulhar
Em claras águas e no sangue do lagar...

30/12/2006



Quando avisto ao longe... (de Alma Welt)


(65)

Quando avisto ao longe o casarão
Da minha infância e agora da poeta
Que o canta e molda em emoção
Como reminiscência predileta,

Eu vejo que eterno ficará
Em sua saga própria, suas lendas,
Conquanto a decadência chegará
(as paredes já ostentam suas fendas)

Pois tudo permanece na memória
Que co'a mente do leitor forma um todo,
Como as ruínas das Missões e sua glória...

Aqui a Alma amou e foi amada,
Aqui foi feliz c'o Vati e o Rôdo
E com a prole inocente e encantada!

30/12/2006


Todos os deuses (de Alma Welt)


(64)

Quando afinal vejo o ano se findar
À meia-noite eu faço um ritual
Ao pé da macieira do pomar
Onde eu vi os deuses e o Graal.

Sim, pois acredite-me o poeta:
Aquilo que contei no meu romance*
De esteta não foi coisa, nem de asceta
Ou de louca que a tal camisa amanse.

Ali vi chegarem os do Olimpo,
Mas junto com os outros do Walhalla
Enquanto eu passava a vida a limpo.

E foi quando todos juntos, de roldão,
Me fizeram mergulhar na própria vala
Do meu sonho, a um metro do meu chão.

18/12/2006

Nota da editora:

Alma tinha experiências visionárias desde a infância. No seu romance autobiográfico A Herança, ela conta num certo momento a invocação mágica noturna que fez, queimando ervas numa trípode (inclusive a erva-mate) diante de sua macieira sagrada, a "Ara", a fim de pedir inspiração para salvar a estância em perigo. E eis que os deuses do Olimpo e do Walhalla juntamente com os "numes dos pampas" compareceram todos tumultuadamente sobre o pomar, à luz de um luar prateado, culminando com um estranho desmaio dessa Alma sacerdotisa pagã, que a fez ficar levitando na horizontal a um metro do chão, até que o nosso irmão Rôdo apareceu correndo, chamando por ela, e a amparou tendo que empurrá-la docemente para o chão para que pousasse, e então carregá-la desfalecida, para o casarão.
Temos motivos para acreditar que essa passagem do seu livro também
é verdadeira.


A vida secreta dos pavões (de Alma Welt)

(63)


Quando guria sonhava ser estrela
Mas de balé ou então do Alla Scala:
De ópera, como a Callas, que ao vê-la
Um dia achei que iria superá-la.

Meu Rôdo até hoje me incentiva
E acha que o Vati fez milagres,
Acredita que a irmã é uma diva,
Sua poesia faz escola como Sagres.

Sim, poetas navegam universos
Belos, multiformes, com seus versos,
Mas se trata do mundo impraticável,

Cuja beleza seduz por gerações
Mas que acaba sendo imponderável
Como a vida secreta dos pavões...

28/12/2006



A Revolta dos Amores (de Alma Welt)


(62)

Meus amores revoltados se congregam
No tempo de minh' alma e coração,
Ai! Como saber se um dia sairão
Das dores e cobranças que os cegam?

Rôdo, a quem não mais ofereci
O meu corpo, e depois a prima Helga,
Aquela que eu rimava com acelga,
E gostava de brincarmos de xixi...

E depois Aline, amor paulista,
Que era só pra ser modelo meu
E logo nos meus braços se perdeu.

Ah! Andrea, que ao amor correspondia
Desta Alma louca e nunca vista
E que por pensar-me morta, mais sofria...

27/12/2006


O Canto de Outra Era (de Alma Welt)

(61)

Esta manhã corri à pradaria
Como fazia outrora em minha infância
Para sentir o vento que fluía
Qual rio invisível desta estância.

Mas de repente senti o ar parado
Numa súbita e temerosa calmaria,
E percebi que no tempo coexistia
O fluxo do presente e do passado.

E como Odisseu fui arrastada
Por uma corrente indefinida
E pela consciência fui chamada

Ouvindo os espectros de outra Era
Protestando por me achar assim perdida
Longe da missão que me coubera...

27/12/2006


O ingrediente final (de Alma Welt)

(60)

Às vezes penso que não tem mais jeito,
Que a vida é indecifrável como esfinge,
Não sabemos muito a seu respeito
Senão aquilo que ela apenas finge:

Um mundo de aparências enganosas
Cujo sentido arriscamos decifrar
Com as nossas ferramentas presunçosas,
E logo uma tendência a nos frustrar.

Então eu faço um esforço para o foco
Concentrar e aumentá-lo muito até
Na acuidade da pesquisa "in locco"

Mas descubro que não sou cientista fria,
E preciso lembrar-me de que a fé
É o ingrediente final desta Poesia.

27/12/2006



O meu Natal (de Alma Welt)

(59)

É Natal e estou como criança
Entre crianças dentro do meu lar.
Meus queridos e a casa em abastança,
Quê posso mais querer, quê desejar?

Matilde minha ex-babá se esmera
E uma mesa farta nos espera;
Devemos sentar e agradecer
Sermos dignos de ter o que comer.

Mas quanto, eu pergunto, apenas quanto
Merecemos a fartura e o privilégio?
Por quê perdura em mim este espanto?

Então, Patrícia, como um sortilégio
Toca meu rosto refazendo o encanto:
O Natal basta ser amarmos tanto...

25/12/2006


As mulheres que colhem flores (de Alma Welt)


(58)

Quanto tenho estado a colher flores
Neste jardim amado desde a infância!
Aqui eu dediquei aos meus amores
Os melhores instantes de constância.

A mulher que colhe flores permanece
No tempo e nas retinas de alguém.
É imagem que a todos enternece
E é ícone e símbolo também.

Quando não houver quem as colher
No pé que as formou sem as tolher
As flores morrerão envelhecidas:

Foram belas, ali, por algum tempo,
Mas não produziram o momento
Do sorriso e das mãos agradecidas...

24/12/2006


A forca do umbu (de Alma Welt)


(57)

Plasmado no tronco como um quisto
De um velho umbu a forca gravada
É o lado da estância mais sinistro,
Que descobri em distante temporada.

Questionei ao Galdério a sua causa:
"A forca foi aqui, no casarão
(ele respondeu fazendo pausa)...
No umbu é só do povo a falação".

"Aquela árvore é inocente como nós,
O enforcado foi no tempo dos avós,
Do velho Joachin Welt, o vinhateiro,

Que comprando em ruínas a estância,
Trançou com muita fibra e ganância
A corda do antigo estancieiro."

05/01/2006

Nota da editora:

No seu romance A Herança, Alma conta o episódio do suicídio
do antigo estancieiro Valentim Ferro,que, arruinado por
dívidas,tendo vendido a estância ao nosso avô, este o encontrou, na manhã seguinte, enforcado no sotão, pendente de uma corda amarrada na trave do telhado, vestido a caráter com suas bombachas, botas, esporas e pala. Ao lado da banqueta caída sob seus pés, a cuia e bomba esparramadas, com o mate derramado ainda fumegante. Ele tomara o seu chimarrão até o último instante...



Alma insegura (de Alma Welt)

56)

Sinto falta do "velho" em minha vida:
Minha mãe morreu em meio à lida
E meu pai não era velho, era lúdico,
Assim, como uma espécie de deus músico.

E agora olho em volta: tão sozinhas,
Quando é a mim que cabe ser esteio,
As crianças cresceram de permeio
Entre mim e sua mãe, as pobrezinhas.

Bem sei que não devo me queixar,
Não sou fraca, assim, de jogar fora,
Embora só pareça poetar...

Mas é que aos poetas, disse Keats*,
Falta aquele caráter, muito embora
Pareçam estar com a vida sempre quites.

24/12/2006


Nota da editora:

Pesquisando a bibliografia da Alma, descobri o texto
a que ela se refere ao citar o poeta romântico inglês John Keats
(1795-1821). Trata-se de uma carta do poeta em que ele diz que todos os seres da natureza, homens, mulheres, crianças, as estrelas, etc, todos eles criaturas de impulso, são poéticos por excelência porque possuem um atributo imodificável que lhes confere identidade. O Poeta (com excessão do tipo "egotista sublime")carece de identidade própria, porque se vê na contínua nescessidade de ocupar o corpo de outrem. Seria na verdade, como diria o nosso Mario de Andrade, um "herói sem nenhum caráter".
Mas acontece que Alma, enquanto poeta confessional, se inscreveria justamente no tipo egotista sublime. Sua identididade é nítida e seu caráter bem marcado, delineado. E sua autocrítica é sempre perpassada de humor. Por essa e outras coisas sua morte ainda constitui um enígma.

Mil sonetos (de Alma Welt)

(55)

Sei que um dia farei soneto "mil"
Como já o fez o rei Pelé
Que sendo vate de peito-de-pé
Cada gol era um soneto do Brasil.

Mas eu que não sou louca mas gaúcha
Em vez de ir por aí à queima-bucha,
Vou pela vida com talvez pouco juízo
Como se só sonetar fosse preciso.

Pois suspeito ainda, na verdade,
De que tanto soneto razoável
E uns poucos acima da metade

Vão erguendo o castelo, monumento
Que construo a cada vão momento,
Uma carta, um sonho, ah! quão instável...

23/12/2006

Nota da editora:

Infelizmente Alma não chegou ao soneto mil. Dentro de sua vasta obra
em prosa e poesia, que contém inclusive centenas de poemas
em verso livre, os sonetos são cerca de setecentos (o que já nos parece uma enormidade).Tudo em sua personalidade, suas metas e propósitos, sua ardência na vida e no amor, sugere que, na verdade, não tenha se suicidado.Talvez seu "castelo de cartas" tenha desmoronado por acidente. Ela amava demasiado a vida, para isso...


The Last Christmas (de Alma Welt)

(54)

Rôdo, traidor e ainda amado
Que me ligas aí dessas europas
Pra me dizer que estás atribulado
E não podes enviar as tuas tropas

Para vir salvar meu coração
Assaltado de temores e tristeza
Por um Natal afinal de solidão
Com a falta que me fazes, com certeza.

Eu olho à minha volta e sinto tanto
Que a vida tenha entornado o caldo
Pr'a Solange, o Alberto e o Geraldo

Perdidos sem o pranto que não pude,
Os piás a mudar, perdendo o encanto,
E eu a despedir da juventude...*

23/12/2006

Nota da editora:
* "a despedir da juventude"- Do ponto de vista físico Alma estava no auge de sua beleza e juventude.
Entretando a depressão estava talvez produzindo nela, subjetivamente,
um envelhecimento psíquico que este soneto sugere.


Que falta... o meu Natal! (de Alma Welt)

"Mudou o Natal, ou mudei eu?" (Machado de Assis)

(53)

Eis aí o Natal neste meu Pampa.
E eu não sei se gosto ou se minto...
Faltam tantos queridos, falta tanta
Emoção que agora não mais sinto!

A Mutti, o Vati, até a irmã*
Que me fazia picuinhas de Natal
Só pra não perder a mão do sal
Com que cosinhava a coisa vã.

E Alberto*, o meu fã embriagado
Que não obstante meu cunhado
Me declarava amor e coisa e tal...

Rôdo, onde está?* E a irmã Lúcia,
Pê e Pati e os anjinhos de pelúcia?*
Ah! Como faz falta o meu Natal!

23/12/2006

Notas da editora:

*irmã- Alma se refere à nossa irmã mais velha
Solange que a perseguia muito, se tornando
mesmo sua inimiga. Mas ambas se perdoaram na morte
de Solange nos braços da Alma. Isso está contado
no romance auto-biográfico A Herança.

*Alberto- Nosso cunhado alcoólatra, viúvo de
Solange que sobreviveu a ela (que o havia abandonado) apenas um ano.
Alma lhe tinha carinho pois este salvara-lhe a vida
em circunstâncias que estão descritas no romance.

*Rôdo, onde está?- O amor de Alma por nosso irmão desde a tenra infância, durou até o fim, e é bem conhecido dos leitores da nossa poetisa.
No último Natal Rôdo chegou da Europa atrazado, só no Ano Novo.

*Pê e Pati- Pedrinho e Patrícia, filhos de Solange
e Alberto, e que agora são meus filhos.
*... os anjinhos de pelúcia- Alma se refere assim
aos gêmeos Hans e Christian, meus filhos.
Chegamos de Alegrete nas vésperas do Natal,
e encontramos Alma melancólica e nostálgica,
sintomas da doença a que atribuimos a sua morte.


A pena do pensar (de Alma Welt)

(52)

Muito tenho pensado em tudo isso:
Viver, pensar, amar e desejar
E depois morrer, dar um sumiço
Pra ser lembrada só por quem lembrar.*

Mistério é, quisera eu me divertir
E não só pensar, amar e desejar;
Amar, pensar, sofrer e mais pensar
No quanto estou cônscia de existir...

Pois a consciência vigilante
Nunca me deixou depois da infância
Viver a vida plena, confiante,

Já que aquela inocência deslumbrante
Que agora me visita sem constância,
Aparece só no gozo de um instante.

23/12/2006

Nota da editora:

*Versos como esse, abundantes na série Pampiana,
dão o que pensar sobre previsão, vidência ou propósito,
tão pouco tempo antes do falecimento trágico
(e ainda misterioso) da amada Poetisa.


"Nossa Vellha Infância" (de Alma Welt)
(para Arnaldo Antunes e Marisa Monte)

(51)

Minhas crianças lindas me rodeiam
Nos últimos momentos "mais felizes",
Adolescentes já, com seus deslizes,
Mas que ainda o bem e o belo anseiam.

E eu me pergunto justamente agora
Se lembranças desta "ainda" infância
Que eu sei, não tardará a ir embora,
Restarão encantadas nesta estância,

Se como este jardim e este pomar,
Esta sala imensa e com lareira
Ah! coberta ficará da vã poeira

De um período passado e tão distante,
Quando éramos felizes sem pensar
O que estou pensando neste instante...

23/12/2006

Nota da editora

Apesar de normalmente ouvir mais música clássica
e folclórica, Alma adorou a letra de Arnaldo Antunes assim como
a voz maravilhosa de Marisa Monte. A singela canção
"Velha Infância", dos "Tribalistas" lhe pareceu perfeita,
e a imagem de grande evocação poética.


Soneto antigo (de Alma Welt)

(50)

O que pode um coração já impotente
Quando tudo já foi dito e feito,
E as palavras vagam no teu peito
Como as sombras de um luar ausente?

Esgotaste a quota de argumentos
E de súplicas servis ao contendor,
Esvaíste a ração de sofrimentos
E agora não tens senão rancor.

E olhas então no teu espelho
E vês que tudo estava em tua mente
E o outro nem existe, simplesmente,

Pois foi contigo mesmo que lutaste
E nada podes contra o deus-escaravelho*
Do deserto que em teu peito semeaste.

22/12/2006

Notas da editora:
*deus-escaravelho- provavelmente o símbolo do sol
dos egípcios dos tempos dos faraós, ao mesmo tempo um
símbolo do “eterno retorno”, pois os escaravelhos
do deserto rolam com as pernas traseiras uma bola
de esterco, como uma esfera ou círculo perpétuo.
Este é um dos mais enigmáticos sonetos da Alma
e esta imagem arcaica sugere a sua conotação metafísica.
A rigor, não deveria estar nos "Sonetos Pampianos",
mas entre os "Sonetos Metafísicos da Alma".


Estórias de *gaudérios (de Alma Welt)

(49)

Ontem caiu atroz tormenta
Sobre os campos e tetos da fazenda,
Relâmpagos que o povo ainda comenta
E um raio que começa virar lenda.

"Matou um novilho?"-um diz-“não, foi touro,
Não viste, tchê, aquele estouro?”
“Eu fui e vi sim a barrigada
Da rês, pela relva esparramada...”

“Bá, compadre, não me venha
Com conta de gaudério, te conheço.
Morreu somente um cão que desconheço,”

“Mas não importa, tchê, foi coisa brava,
O *Gaucho lá de cima desce a lenha
Quando encontra a porta com a trava!”

22/12/2006

Notas da editora:

* gaudério- (termo gauchesco) indivíduo
fanfarrão e sem eira nem beira.

..."o Gaucho lá de cima'- pronuncia-se "gáltcho", à maneira
dos "castelhanos" (uruguaios e argentinos). Alma coloca
na boca de seus personagens essa maneira saborosa
e regionalística de se referir a Deus, o que, na verdade, não é comum.


Um conto de fada da Alma (de Alma Welt)

(48)

Uma vez, acreditem, encontrei
Uma fada no bosque aqui da estância,
Era já passada a minha infância,
E comovida eu quase desmaiei...

Sei que uns leitores estão zombando,
Algum pode até estar zangado,
Achando que eu estou extrapolando
Não atina o que me tenha motivado.

Ó amigos da surpresa e do espanto!
Eu juro que não sei como ela veio
E se ainda hoje comigo ela caminha,

Pois ela me tocou, pra meu encanto
(não acreditem em estória de varinha )
Pasmem! com os lábios no meu seio...

21/12/2006


Os frutos da Poesia (de Alma Welt)

ou
A poesia dos frutos

(47)

Venho ao pomar querido todo dia
Mas não pra comer frutos ou colhê-los.
Não sou gulosa e prefiro vê-los
E pensar que são pura poesia.

As mangas são versos dulcorosos,
Como ameixas são poemas plácidos;
Os figos, epigramas saborosos
E os limões, satíricos e ácidos.

Mas ah! a macieira preferida,
Que pelo seu fruto de excelência
Tem um lugar supremo em minha vida:

O soneto que me tenta qual pecado,
Por isso recompondo a inocência
Que produziu este ser apaixonado!

26/12/2006


Um soneto para a minha cigana (de Alma Welt)

(46)

Minha amada cigana está vindo!
A Rafisa... um peão veio avisar.
E logo penso que quando ela chegar
Meu mundo voltará a ficar lindo...

Eu sei que as ciganas querem paga
Para ler o futuro sem agir,
Não lhes cabe escolher ou decidir,
Mas a minha cigana é mesmo maga

Pois seu dom é trazer encantamento
Num carroção puxado por jumento
Que abre um arco-íris na poeira

E ela chega com a silhueta esguia
De seu corpo moreno que se esgueira
Para trocar comigo sua poesia...

21/12/2006


A "pontinha" da Alma (de Alma Welt)

(45)

Quando o sol se põe na minha varanda
Eu fico muito tempo a contemplar
Pra ver o universo como anda
Com minha estrela ainda a faltar.

Sim, porque meu pai me garantia
Que cada estrela é uma alma que cumpriu
O seu papel e agora brilha noite e dia,
Só visível quando o astro-rei saiu.

Mas eu sonho ainda ter algum destaque
Nessa imensa peça cosmogônica
E pra isso me comporto meio mal:

Uma estrelinha deslumbrada e basbaque
Fazendo uma pontinha meio cômica
Para um dia ter um brilho triunfal...

20/12/2006


Prelúdio à tarde de uma ninfa (de Alma Welt)

(44)

Muito me estendi na pedra chata,
Nua como Zeus me concebeu
Na borda do meu poço da cascata
A sonhar com algum herói aqueu

Que me possuiria sem coroa
Me doando como um fauno a sua linfa
Por me ver ali largada como ninfa,
Sem véu e sem grinalda, assim à toa.

Nada de castelos, carruagens
De abóbora, sapatinhos de cristal,
Nada dessas pueris bobagens!

Eu me via num bosque ideal
De um remoto tempo arcadiano,
Com Debussy, o Vati... e seu piano.

20/12/2006


Eu e os piratas (de Alma Welt)

(43)

Meu irmãozinho construiu embarcação
Toda de caixotes, pouco destra,
Com um cabo de vassoura e armação
Que pretendia ser a vela mestra.

E a arrastamos juntos ao laguinho
Da cascata, pra com ela navegarmos
Como piratas, eu com bigodinho,
Ele com a venda e os sarcasmos.

Mas eis que me vi numa enrascada,
Pois borrando meu bigode com o dedo
Ele disse: “ Descobri o teu segredo!”

“Já que és mulher és cobiçada
E vais ficar pelada e com medo,
Pois serás de toda a marujada!”

20/12/2006


No dia em que a Mutti nos flagrou (de Alma Welt)

(42)

No dia em que a Mutti nos flagrou
A mim e ao irmão em brincadeiras,
Pelos nossos cabelos arrastou
Entre peões e risadas zombeteiras.

Com a mãozinha, obrigada, eu cobria
As “vergonhas” ( o que não me ocorreria)
E fez-nos entrar no casarão
Para mais furibundo e atroz sermão.

Mas eis que o Vati, carinhoso
Disse: —Pára, mulher, assim não vai...
Criança é bichinho só curioso...

-Não a toques, vê, está pelada!
Gritava minha mãe ainda irada...
E ele: “Vem, minha princesa, com teu pai!"

20/12/2006


Uma vez, guria, vi... (de Alma Welt)

(41)

Uma vez, guria, vi, estarrecida,
Um peão e sua chinoca no galpão
Sobre a palha, seminua, estendida
Ela gemia como em parto ali no chão.

Tinha as pernas no ar e muito abertas,
E o gaúcho mergulhava em suas coxas,
E eu, de onde estava, entre frestas
Via detalhes que poriam outras roxas.

Sim, eu via como aquilo adentrava
Chafurdando com estalos obcenos
Enquanto sangue e ranho exudava

Melando palhas agitadas qual acenos,
Grotescamente coladas nas virilhas,
Num flagrante de estranhas maravilhas!

20/12/2006


Eu fui acostumada a ser princesa (de Alma Welt)

(40)

Eu fui acostumada a ser princesa,
Sinto muito qu'isso possa incomodar...
Minha tão inusitada realeza
Não é motivo para me envergonhar.

Há algo de sagrado em tantos dons
Que recebi como poucos nesta vida,
Nascida para o amor e acolhida
Como fruto das imagens, cores, sons

Que resumem a alma deste chão,
Fazendo o meu pai me consagrar
Às artes, à beleza e à paixão.

E a mim cabe agora celebrar
Com minha voz a glória desta terra,
Na missão que amiúde me desterra.

20/12/2006

Olhar Cartesiano (de Alma Welt)

(39)

Meu pai um dia recebeu e hospedou
Um sábio francês, na minha infância.
Ele tinha um olhar que me chocou
Pois não havia igual aqui na estância.

Era o olhar, depois eu soube, de Descartes
De uma inteligência contundente
Mas a que faltava Engenho e Arte,
Uma vez que era só razão e mente.

E me lembro da repulsa que então tive,
Que me olhou longamente(estava tesa)
E era só um olhar de detetive

Que sondava a minha alma virginal
Para ver se encontrava o material
De que era feita a minha pureza...

19/12/2006



Dos Mares à Montanha (de Alma Welt)

(38)

Mares do meu sonho tão profundo
Onde as coisas voltam recorrentes
Como tesouros que sobem do fundo
E trazidos são pelas correntes...

Como podem achar alguns humanos
Que a vida é uma só e linear?
São vagas, são extratos e são planos
Que vêm a nossa vida acumular.

Uma vida é pouco para tanto,
Mas estou certa de que uma só não é,
Devo ter muitas outras por encanto,

Que aqui estão todas juntas no sopé
Da montanha que sou a escalar
Para o mais alto de mim mesma coroar...

19/12/2006


Soneto Pedante (de Alma Welt)

(37)
Como disse Calderón a vida é sonho,
Continuo inclinada a acreditar...
Tudo é miragem para nos mesmerizar
Como o fazia Mesmer, doutor bisonho.

Na verdade o ser humano só foi feito
Da onírica matéria de Miranda
Que em meio à tempestade ainda desanda
A fazer ressoar frases de efeito

Pois saudou o admirável mundo novo
Que o Aldous captou entre os ateus
Projetando melhorar o pobre povo

Mas sonhar com a Natureza ainda prefiro,
Como Jâmblico, discípulo de Porfírio,
O sonho que ela tem do próprio Deus...


19/12/2006


Notas do editor

(Pelo título auto-crítico percebe-se que Alma quis ressaltar o caráter humorístico desse seu curioso soneto.)

*Calderón-- O grande escritor barroco espanhol Pedro Calderón de La Barca
, que escreveu a notável comédia “La vida és sueño.

*Mesmer- Franz Mesmer, médico alemão( 1735-1815) fundador da teoria do magnetismo animal, precursora da prática sistematizada do hipnotismo.

*...matéria onírica de Miranda- Alma se refere a personagem da peça A Tempestade, de William Shakespeare, a linda e quase encantada filha de Próspero, duque destronado de Milão. Shakeaspeare colocou na boca deste, na peça a célebre frase: “Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos”. Quanto a Miranda , esta pronuncia a “frase de efeito” a que Alma se refere ao final da peça, a famosa “O brave new world...”( ó admirável mundo novo...), que Aldous Huxley citou como titulo de sua obra profética “Brave New World”( no Brasil, O Admirável Mundo Novo ), em que prevê um duvidoso e controvertido planejamento genético como meio de aperfeiçoar a raça humana.

Jamblico – Alma se refere ao pouquíssimo conhecido filósofo Jamblico de Caldéia, da época do imperador romano Juliano, o Apóstata, do segundo século do cristianismo. Jamblico era discípulo de Porfírio, o neo-platônico, que por sua vez era discípulo de Plotino. Alma se refere a um maravilhoso texto de Dmitri Merejkowski em que este coloca na boca de Jamblico (diante do imperador que o procurou) um monólogo mais poético, na verdade, do que filosófico, sobre a Natureza que sonha com Deus, perpetuamente. Alma considerava este o mais belo texto que ela jamais leu.



Missões... a minha poesia (de Alma Welt)

(36)

Meu pai, um dia, didático, me quis
Levar ao território das Missões
E mostrou-me o poder das Reduções
A força, a arte e fé dos Guaranis.

Eu, guria, na presença de tais muros
De dura pedra assentados pelo amor,
Jurei, por minha vez, com versos puros
Ergueria os meus, com a mesma dor,

Mas que a minha catedral não cairia,
Não tombaria como sombra de si mesma,
Não se arruínam os muros da Poesia:

As paredes erguidas verso a verso
E guardadas por mim qual abantesma,
Tijolinhos como estrelas no Universo.

18/12/2006


De pássaros e plumas (de Alma Welt)

(35)

Uma vez, quando pequena, na varanda,
Eu vi aproximar-se um cavaleiro,
Estávamos no mês de Fevereiro
E chovia, assim, como Deus manda.

E ele vinha, com a viola, encolhido
Como pássaro molhado, e sem amigo.
Um gaúcho não ereto, mas transido,
Apeando e pedindo sopa e abrigo.

Meu pai, pela viola o fez entrar,
O levou, antes da ceia, pro chuveiro
Pra despir e com água quente se banhar.

E eu, piá, na porta do banheiro
Fiquei, ali, fascinada, a observar
Aquela ave novamente se emplumar...

18/12/2006


A minha casa, perdida (de Alma Welt)

(34)

A minha casa, perdida neste prado,
Brota do solo como se fora encantada,
O limo já recobre seu telhado
E as heras a põem meio assombrada.

E se as nuvens recobrem o meu pampa
E começa o tropel da trovoada
Eu sinto como se abrisse a tampa
Da caixa da Pandora atormentada

Que sou, esta Alma dividida
Entre a paixão da Arte e da Vida
A vagar pelo jardim anoitecido

Enquanto o Minuano não me venha
Ao encontro, buscar-me, e como senha
Entoar sussurrante o seu gemido...

18/12/2006



Amores como os vinhos (de Alma Welt)

(33)

Amores como vinhos envelhecem
Guardando aquele travo que perdura,
Mas ficam mais nobres quando esquecem
A dor,imperfeições e a amargura.

É preciso que lembremos dos amores
Como a safra ideal da juventude,
Fiéis aos nossos gostos e pendores
E àquela sensação de plenitude.

Amassadas sob os pés apaixonados
As uvas fomos nós e quão sangramos
Antes de sermos sonhos decantados

Nas garrafas ainda sem um nome,
Sem a cor, o buquê e o renome,
Enquanto nossos sonhos maturamos...

18/12/2006



A Fonte dos meus versos (de Alma Welt)

(32)

Meus versos descem qual cascata,
Aquela do meu poço encantado,
Onde nua eu nado sem bravata
Mas como um ritual inusitado.

Mas, ah! era dos versos que eu falava,
Agora não é hora de banhar-me!
É noite e só resta desvelar-me
No jardim que este poema evitava.

Sim, quero falar do verso fluido,
O ato de escrever que me domina
E que é fonte, e verte como mina

Que nasce desta Alma em catadupa,
Despejando doces rimas que eu cuido
Como o fruto do Jardim mas... sem a culpa.

17/12/2006


Viagem ao pomar (de Alma Welt)

(31)

Pelas ondas do meu Pampa ideal
Eu percorro as rotas de minh'alma
E posso iluminar como um fanal
A nave que de mim venho mais calma.

É noite sobre o pampa e a estrela
Que me guia na viagem para o lar,
(que comecei antes mesmo de fazê-la)
Qual o Negrinho ainda vem me "pastorar".

É o meu destino de volta ao coração
Onde está a Poesia e o meu irmão
Rôdo, que no cais ainda espera

Para juntos encontrarmos nossa Era
No pomar da nossa bela macieira,
Onde tudo começou em brincadeira...

16/12/2006


Abro a janela... (de Alma Welt)

(30)

Abro a janela que dá para o jardim
E vejo meus irmãos ali brincando.
Ah! já começaram! E sem mim!
Voltei à infância, já me atrasando...

Esperem-me, Solange, Rôdo, Lúcia!
E vindos da futura geração
O pequeno Hans e seu irmão
Que parecem dois ursinhos de pelúcia.

Estamos todos juntos... como pode?
Ah! Somos crianças novamente!
Pedrinho pede a Pati que o rode

Ao compasso do *scherzo de Beethoven
Que o *Vati punha alto para a gente,
E que os meus ouvidos ainda ouvem...

16/12/2006


Nota da editora;

*... scherzo- (brincadeira, folguedo infantil, em italiano)
Movimento bem ritimado, às vezes acelerado, em geral o segundo movimento de sinfonias.
*... Vati- (pr. Fáti) papai, em alemão.


O concerto dos pampas (de Alma Welt)

(29)

Quando cavalgo pela minha campina
Eu me sinto num concerto muito fino
Não como da orquestra a maestrina
Mas como seu primeiro violino

E percebo as ondas de harmonia
Pelas pautas onduladas das coxilhas
E como contraponto as maravilhas
Que produzem a secreta melodia...

Flauteados pelo coruscante orvalho
Os graves umbuzeiros e um carvalho
Com as aves como abelha sobre a flor

E regendo, meu avô, qual Karajan,
Cujo vinhedo não seria glória vã
Mas um gran-finale de esplendor!

16/12/2006



Quando chega o verão na pradaria (de Alma Welt)


(28)

Quando chega o verão na pradaria
Eu desfruto ainda o mesmo encanto
Pela revoada e a alegria
Dos pássaros, insetos e seu canto.

O verde agradecido, triunfante,
As árvores no plano ou nas coxilhas,
E salpicando a relva já fragrante,
As flores, as pequenas maravilhas.

E o peão singrando a todo pano
Atrás de um novilho desgarrado
Como a gota que faltava no oceano

Da boiada imensa, mar de guampa
Que se move como a maré do prado,
Ou como branca espuma do meu Pampa.

12/12/2006


Pra conhecer o mundo (de Alma Welt)

(27)

Pra conhecer o mundo e a beleza
Creio que é preciso se entregar
A tudo e a todos, com certeza,
Sem barreiras pro sentir e pro olhar

Foi isso que fiz na minha vida
Embora alguns me possam acusar
De jogar pérolas ou malbaratar
Minha alma ou a carne oferecida

Mas não, eu sei que tudo devo,
E devolvo, sim, não regateio
Não quero só pra mim nem o enlevo

Destes belos dias que desfruto
Que a mim me foram dados só a meio,
Que aos outros a metade eu tributo.

12/12/2006



O Abraço das Águas (de Alma Welt)

(26)

Assim que chego em minha estância
Adentro o casarão, emocionada,
E reproduzo momentos da infância
Colocando na vitrola uma balada,

Um noturno, ou uma valsa de Chopin
(na vitrola, sim, tão antiquada... )
Então passo em revista a livrarada
Para ver se não apareceu cupim.

Mas logo me desnudo prontamente
Para um mergulho na cascata,
Que nunca eu fiz isso por bravata

Mas para o abraço fluido desta terra
Que acolhe com carinho comovente
Aquela que a si mesma se desterra...

12/12/2006

A Fada do meu Pampa (de Alma Welt)

(25)

Nas imensas noites da estância
Fico lá fora como antes ficava
Para ver as estrelas da infância
Aquelas que meu Vati me mostrava.

E vou pela constante e Branca Via
Com o meu Negrinho e sua rezes,
Que como uma delas me sentia
Ou como o pastorzinho às vezes.

Ah! Num doce aconchego eu vivia,
Por me sentir assim tão amparada...
A alma do meu Pampa me nutria!

E eu podia tudo conhecer
Voar e mergulhar como uma fada
No seio deste mundo, sem sofrer...

20/12/2006

Ultra-romântica, ou "Parnasiana" (de Alma Welt)

(24)

"Ora, direis, ouvir estrelas!"
(Olavo Bilac)

Sempre que entro na floresta
Ouço um pássaro que canta só pra mim.
E sei que o seu trinado é uma festa
Que ele faz saudando-me assim.

"És mesmo pretensiosa" – me disseram.
"Agora essa ! Um canto para ti..."
"Em meio a milhares que te esperam,
Ao entrar numa floresta!" – e o povo ri.

Mas conheço o canto e sua rima,
Seu código há muito decifrei
Como o amor que um dia encontrarei.

E se meu coração assim confirma
É porque esse pássaro me estima
E sabe que eu sempre o procurei.

20/12/2006



Soneto da fonte mágica (de Alma Welt)

(23)

Ah! jovem poeta que me vês
Como um anjo e declaras isso a mim!
Como deixar de ser o que tu lês,
Se ao projetares, amor me faz assim?

Nós mulheres somos seres encantados,
Essa é nossa glória, não se iludam:
Viemos para o sonho dos amados,
Os olhos dos amores nos transmudam.

Mas, cuidado: a fonte mágica do amante
Nos reconstrói pra que amor nunca se canse,
Como a de *Haggard, no seu belo romance

Em que a rainha Ela, para amar
Banhou-se outra vez no mesmo olhar
E então se destruiu naquele instante...

20/12/2006

Nota da editora:

* Haggard- Alma alude ao romancista inglês H.Ryder Haggard
autor do célebre romance "As Minas do rei Salomão",
que traduzido para o português pelo grande Eça de Queirós
constitui caso raro de tradução superior ao original.
Aqui no soneto, Alma se refere ao romance menos conhecido
de Haggard "She" (Ela), de caráter esotérico e reencarnacionista.


Quando a lua cheia está chamando... (de Alma Welt)

(22)

Quando a lua cheia está chamando
Eu deixo o leito e sigo a sua esteira
Transpondo comovida minha soleira,
Banhar-me à luz e persistir amando.

Com diáfana camisola branca e fina
Eu me sinto nua e transparente
E mais nua eu me ponho em frente
Dessa luz fria que minh’ alma anima.

E deslizo como espectro ao pomar
Guiada por escolta vagalume
No caminho me aquecendo desse lume

Para abraçar a minha Árvore do Sonho.
A *ARA cujas letras eu disponho
Ao sabor do coração que vou gravar...

20/12/2006

Nota da editora:

*ARA- Ao mesmo tempo que quer dizer "altar",
para nossa poetisa são as três iniciais
gravadas por ela a canivete dentro de um coração
no tronco da macieira sagrada ou "Àrvore do Sonho"
de seu pomar: Alma, Rôdo e Aline (um dos seus últimos
amores).


A Grande Noite Austral (de Alma Welt)

(21)

Noite sobre a estância e meu jardim...
Desmesurada, intensa, apaixonada!
Por tê-la em ressonância dentro em mim,
Esta noite é maior, mais exaltada.

Grilos, sapos, dançam pirilampos
Em alegre fandango nestes prados;
Quero voar sonhando sobre os campos
Até o *castelhano e seus costados!

Ali os *gauchos sem acento me saúdam
E me convidam ao mate em seus *bivaques,
Cofiando seus pontudos cavanhaques...

E com eles vou mais longe, *rumo austral,
Me escancham na sela e se me *grudam
Pelos pagos num galope espectral!

20/12/2006

Notas da editora:

*..."o castelhano e seus costados"- Alma se refere
à fronteira do Uruguai.

* ...gauchos sem acento- No pampa uruguaio e argentino,
gaúcho se pronuncia "gáltcho".

* ..."seus bivaques"- Alma se refere assim às fogueiras noturnas de acampamento, onde a chaleira do mate ferve.

*... "rumo austral"- em direção ao sul, ao pampa uruguaio.

*... "se me grudam"- Alma quer dizer que,
"escanchada"(montada como homem)na sela,
na frente do cavaleiro, este a agarra por trás.

*... "pelos pagos"- por regiões remotas, desconhecidas.



A Ofélia dos pampas (de Alma Welt)

(20)

Contemplativa mais a cada lua,
Tomada por estranha nostalgia
Me ponho na varanda qual coxia
De um palco onde o coração atua.

E me vejo qual Ofélia coroada
De flores, entoando um triste canto
Mais veemente que o perdido pranto
Para morrer de mim tão afogada!

E nem falta o príncipe, qual seja:
Hamlet dos pampas, ah! tão puro,
Que como monja e amante me deseja.

Não direi a tragédia com que arca,
Que sendo irmão caminha sobre o muro
Dos fantasmas desta bela Dinamarca...

28/11/2006

Soneto dos Amores Idos (de Alma Welt)

(19)

Amores idos vêm durante a noite
Como bando de falenas no meu sonho
E esperam que em seus vôos eu me afoite
E siga-os ao seu vale tristonho

Onde vagam sonânbulos no exílio,
Perdidos qual cometa em Branca Via
Ou como aquele um, pródigo filho
Que espera ser mimado todavia.

E eu os acolho no meu seio
E a cada um consolo, ai de mim!
Que a mim mesma consolo nunca veio...

E a todos eu garanto o meu amor
Que nunca do meu peito (ah! que dor)
Apagarei, fiel que sou até o fim!

27/11/2006


O Fanal da Pradaria (de Alma Welt)

(18)

Verde Pampa de minha terra natal
Onde a alma navega entre as coxilhas
Aos olhos do peão como um fanal
Sobre mar pleno de encantadas ilhas!

Galopes infinitos, plenitude,
Integração cavalo e cavaleiro
O antigo ideal de completude:
O centauro uno e derradeiro...

Como eu mesma, peona e poetisa
Dualidade também de que me orgulho
Fiel pagã e grã-sacerdotisa

Desta porção extrema do país
De cuja saga imersa num mergulho
Eu volto como santa e meretriz!

24//11/2006


Soneto de Nostalgia (de Alma Welt)

(17)

Quanto fui amada em minha infância!...
Como viver então sem mais viver
O reino de encanto que era a estância,
E alegria e beleza ainda manter

Se a alma deste pampa era o meu Vati*
E seu piano mágico, polido,
Agora amargo como o coração do mate
E surdo como o verso com que lido?

Perdida do pomar do paraíso
Não só a inocência mas juízo,
Desço o rio de amor da minha mente

Que me mantém acesa e ainda viva
Nesta mansão que afunda lentamente
Como um *barco bêbado à deriva...

19/11/2006


Notas da editora:

* Vati- do alemão, papai. Pronuncia-se Fáti(diminutivo de Vater
( pr. Fáter(pai)

* barco bêbado- alusão ao célebre poema de Rimbaud,
Le Bateau Ivre(O Barco Embriagado).



Quando volto ao casarão (de Alma Welt)

16

Quando volto ao casarão após a lida
É que passo a ter do mundo um panorama,
A olhar a vida aqui da minha cama
E sentir a minha alma agradecida.

A vista do jardim... além, o pampa,
Eis a minha verdade, ah! o pomar,
O bosque, a cascata, ali a rampa
Que leva até o vinhedo e o lagar!

O ser humano, eu vejo, se debate
Perplexo, na vida e no mundo
Procurando a superfície e não o fundo,

E percebo que o homem só suporta
O rumor e agitação, sem que se farte,
Pelas paredes, quatro, além da porta...

5/12/2006

______________________

Quando sopra o vento no meu Pampa ( de Alma Welt)

15

Quando sopra o vento no meu pampa
Eu corro para fora do meu quarto
E sinto como revivendo o parto
Que me deu vida e jogará na campa.

Então eu rasgo o meu vestido ao vento
E me entrego nua e inteira à ventania
Sentindo entrar carícia nada fria
Que gera um orgasmo longo e lento.

Ó vento meu peão, ó haragano,
Cálido amante que ejacula a chuva
E não se avista com o velho Minuano

Que quando sopra gela-me na veia
Qual fosse de mim mesma a vã viúva
Colhendo-me na minha própria teia!

05/12/2006



Eu vinha pela senda... (de Alma Welt)

14

Eu vinha pela senda rumo ao lar
E gritei, o coração saltando, ai!
Reconheci, eu juro, o dedilhar,
Eu ouvi o piano de meu pai.

Atravessei a grande porta sem aldrava
E penetrei no santuário de seus livros.
Ali, o Steinway mudo ressoava
E vi meu pai, como antes, entre os vivos.

Ali estavam minha Mutti e a avó Frida,
O pobre Alberto, bêbado e bondoso,
E Solange que com ele ainda discute.

E entre eles, alto e majestoso,
O avô Joachin, que não quis ouvir em vida
Este piano que na morte repercute...

06/12/2006


Soneto de gratidão (de Alma Welt)

(13)

Verdes prados do meu Pampa, minha vida,
Onde nasci para o amor e a esperança,
Doce leito de uma estrada percorrida
Entre lágrimas e risos, canto e dança!

Como cantar porém toda a paixão
De ser tua filha amada e renascida?
De retornar da dor da internação*
E ter ainda a chance devolvida

De ser a Alma intensa e amada
Que ao amor das letras devotada
Teria ainda um público, um recanto*,

E fruiria do carinho de poetas,
Leitores de visão*, almas seletas
A cujos olhos devo o meu encanto!

16/12/2006

Notas da editora:

* ...internação: Alma fora internada por um mês
numa clínica em Alegrete, por motivo de uma angústia
períodica que a acometia desde guria e que
foi se agravando.

*..."recanto": Alma aqui faz alusão a um
certo site literário da Internet
do qual acabou expulsa postumamente,
por grande equívoco, e no meio
de verdadeiro escândalo.

*..."leitores de visão": esse parecer da Alma,
por sua candura, acabou se revelando um engano seu,
pois a poetisa foi traída por quase todos os poetas que a
comentavam e elogiavam ou que com ela se
correspondiam, e que lhe viraram as costas(salvo
honrosas excessões) ou a detrataram ao acreditar,
precipitadamente,que ela não existia e que se tratava de
um heterônimo de alguém, como se essa hipótese,
se fosse correta, constituisse um "crime". Esqueceram
depressa seus elogios e louvações, e sobretudo o
quanto haviam fruído de seu encanto e cultura.
A ignorância não tem fim...


Corre égua minha... (de Alma Welt)

ou
O Dom Quixote de saias

(12)

Corre, égua minha, vai lampeira
A cauda e longa crina ondeando!
Vai, mas vai sem mim, que estou te olhando
Sentada, triste, aqui nesta soleira...

Eu vejo que te nutres do olhar
Da tua amazona preguiçosa
Que por hoje prefere declinar
Do teu belo convite, coisa honrosa.

Ora me aperta o peito arfante...
Mal posso imaginar-me no teu lombo
Na fúria de um galope rocinante,

Pois acabo de levar um grande tombo,
E perdido o meu amor, restou o mote:
Descadeirada estou qual Dom Quixote!

15/12/2006



O canto da Açoriana (de Alma Welt)

(para minha falecida mãe, Ana Morgado Welt)

(11)

Entre Alegrete e Livramento
Bem perto do Rosário do meu Sul
Está uma espécie de convento
Com as janelas pintadas de azul.

Eis o casarão da minha infância
Que ainda hoje me vê flores colher
E levantar-me de noite com constância
Para com os vagalumes me entreter,

Logo despindo a camisola fina
Para branca me lunar enquanto choro
A vagar nua pela minha colina

Até ouvir a voz que herdei de Ana
Qual fora o triste espectro canoro
De minha bela mãe... a Açoriana!

15/12/2006


Doces manhãs da minha juventude (de Alma Welt)

(10)

Doces manhãs da minha juventude,
Que são pra mim agora e já lembradas!
Como poeta carrego a infinitude
Do finito e das horas não passadas...

Tenho uma constante nostalgia
Que acompanha o meu senso de beleza,
A alegria do minuto que partia
E a saudade da próxima surpresa.

Tenho uma dor eivada de prazer
E a sensação de me esvair
Nos espinhos e nas farpas do viver

Um martírio prazeroso em carne viva
Como a alma nua a dividir
O corpo dúbio e enganoso de uma diva...

12/12/2006



A Magia do Olhar (de Alma Welt)

(9)

Quando vier o inverno desta vida
Eu terei muita coisa pra contar,
Mas se estiver ainda convencida,
Como estou, de ser de mim meu avatar.

Em verdade venho, sim, assim contando
Dia por dia a saga de viver,
O meu olhar atento decifrando
Os signos das coisas e do ser.

Como não podem ver alguns amados
Que a vida é magia e ritual
E todos os minutos são sagrados?

Então devo prostrar-me agradecendo
A beleza de tudo o que é igual
Mas sempre nova face oferecendo...

11/12/2006


A Oferenda (de Alma Welt)

ou
O que me disse um vagalume...

(Dedico aos nossos grandes parnasianos,
de Olavo Bilac a Vicente de Carvalho)

(8)

Noite clara, a natureza em festa
Saúda-me, feliz , aqui neste jardim.
Um vagalume dança em minha testa
Dizendo: "Vem, me siga já, aqui, assim!"

"Vem comigo até o bom caramanchão
Onde podes exibir a tua alvura
Sem seres vista por algum peão
Que te possa vigiar pra te ver nua...

Como num leito, deita em teu vestido,
As pernas entreabertas, que na fenda
Como uma pérola, talvez com um prurido

Pouso eu na concha que o Amor cultua
Enquanto, minha Alma, em oferenda,
Abres teu corpo para a luz da lua!"

11/012/2006



A Apoteose da Alma (de Alma Welt)

(7)

Voem,versos meus,vão e voltem
Carregados de dourados qual moldura
De quadros consagrados que regressem
Ao pintor... ao pé da sepultura!

Tragam a mim os ecos dos leitores,
Sem embargo suas lágrimas também,
As emoções que provocaram e as dores
Que compartilharam com alguém...

Mas ah! a alegria, a gargalhada
Do súbito entusiasmo dos guris,
Mais que o suspirar da mulherada,

Que soe como as palmas e os bis
Em meio aos assovios e aos bravos,
Buquês trazidos, de rosas e de cravos!

10/12/2006


Os sonhos da razão (de Alma Welt)

"El sueño de la razón produces monstros." (Goya)
(6)

Levantam-se na noite os meus sonhos
E me acordam, febril e alvoroçada.
Não me embalam, não, não são risonhos
Meus sonhos de poeta apaixonada!

Paixão da vida, a ânsia dos autores,
Da louca ilusão de eternidade,
Sonhos de grandeza, dos louvores,
Dos vôos sobre os tetos da cidade!

Ah! Ser o ideal que desejei:
Ser a Alma aqui do Rio Grande,
A musa que de mim me projetei!

Eu, que necessito ser amada
E quero ser feliz além de grande,
Tudo quero, tudo, e tenho nada...

11/12/2006


O Negrinho do Pastoreio (de Alma Welt)

(5)
Uma vez cavalguei nua pelo prado
E longe fui demais, tão imprudente!
Então meu baio exausto, esgotado,
Negou-se a retornar, o inocente.

Ali estava eu longe da estância,
Nua e com frio, temerosa,
Perdida do meu pampa cor-de-rosa,
E despojada, retornada à minha infância.

E então, patética, febril e quase vômica
(não fora bela, eu sei, seria cômica)
Encontrei o meu negrinho pastoril:

Um menino negro como a noite
Que me deu sua camisa, um pernoite,
E sua escolta na manhã primaveril...

08/12/2006


"O Eterno Retorno" (de Alma Welt)

(4)

Quando, amor meu, termina a lida,
E me concentro em memória e solidão
É que sinto melhor a minha vida
E posso auscultar o coração.

Há uma estrada de mão dupla no viver
Que não simplesmente o bem e o mal,
Mas nós e o outro, e nós e nosso ser
Com sua contramão quase abissal...

E da nossa travessia perigosa
Que como caravana principia
A leste do Éden, esperançosa,

Em percalços, abismos e correntes,
No final não há sobreviventes
Senão aquele com que tudo se inicia.

11/12/2006


A Alma do meu vinho (de Alma Welt)

(3)

Doces manhãs da minha juventude!
Embora ainda viva um seu momento
Já o sinto afastar-se em pensamento,
Já não as posso sentir como antes pude...

Outrora eu vi meu corpo se integrar
No lago e na campina sob as chuvas,
Mas foi ele consagrado em meu lagar,
Que rolei nua no mingau das minhas uvas

Que quando vazadas nos tonéis
Me tornariam vinho e sua canção
Para alguns cúmplices fiéis,

E me lembro que este tinto foi servido
Com malícia especial por meu irmão
Brindando a todos com o vinho proibido...

06/12/2006



Soneto da Alma nadadora, ou A nereida dos pampas ( de Alma Welt)

(2)

Meu Pampa, oceano dos amores
Que me viram infanta nua nestas plagas,
Singrando entre as ervas, entre as flores
No jardim ou nas coxilhas como vagas

Que minh'alma nadadora acompanhava
Com o olhar e o coração mergulhador,
Imersa que ao nascer já me encontrava
Nas ondas de um mar encantador...

Aqui nesta soleira estou sentada
Como atenta salva-vida numa praia
A olhar o horizonte que desmaia,

Ou sonhando qual nereida num rochedo,
Que é esta casa-grande naufragada
Num mar de fantasia e engano ledo.

28/11/2006



PRÓLOGO (de Alma Welt)

(1)

Esta é minha casa, o casarão.
Aqui fui amada pelo irmão
Entre os livros do meu pai e o Steinway
Que o maestro dominava e dedilhei.

Mas aqui construi meu universo
Que pra torná-lo digno do mestre
Venho escrevendo a saga em prosa e verso
Desde a sua origem bem campestre

No condado medievo e pitoresco
Onde um Condestável picaresco
Sodomizou a bela ruiva inglesa

Que está na raíz dos meus cabelos
E talvez também nessa tristeza
Que assoma em meio aos meus desvelos.

02/11/2006